Mauro Ferreira no G1

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sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Convertido ao samba do morro, D2 canta Bezerra com reverência linear

Resenha de CD
Título: Marcelo D2 Canta Bezerra da Silva
Artista: Marcelo D2
Gravadora: EMI Music
Cotação: * * * 1/2

Bezerra da Silva (1927 – 2005) se tornou evangélico no fim da vida sem que a conversão alterasse a sua imagem de malandro e de cantor de bandido. “Na verdade, eu sou um cronista / Que transmite o dia a dia do meu povo sofredor”, tentou esclarecer Bezerra, bem antes da conversão, em Partideiro sem Nó na Garganta (Adelzonilton, Nilo Dias e Franco Teixeira, 1992), um dos 14 sambas incluídos na seleção final do bom CD Marcelo D2 Canta Bezerra da Silva, recém-lançado pela EMI Music. O rapper se converte em sambista e cantor ao abordar com reverência repertório que guarda afinidades temáticas com o cancioneiro do Planet Hemp – a ponto de os versos de A Semente (Roxinho, Tião Miranda, Felipão e Walmir da Purificação, 1987) se ajustarem com naturalidade ao canto de D2, assumido usuário de maconha. Mais do que pela temática, o sexto álbum solo do rapper soa inusitado na discografia do artista por reproduzir a sonoridade tradicional do samba de morro. Mérito do produtor Leandro Sapucahy - com quem D2 dialoga nos versos de A Necessidade (José Garcia e Jorge Garcia, 1977), com direito a alguns improvisos autorreferentes na letra – e do pianista Jota Moraes, recrutado para fazer os arranjos de todas as faixas. Até um trio feminino de vocalistas (Carla Pietro, Keilla Santos e Neth Bonfim) foi arregimentado para evocar o coro do conjunto As Gatas, presença recorrente em discos de samba dos anos 70 e 80. Entre sambas que fazem valiosas crônicas sociais sob a ótica do povo marginalizado - caso de Meu Bom Juiz (Beto sem Braço e Serginho Meriti, 1986) - e outros que recorrem a um humor mais popularesco, como Minha Sogra Parece Sapatão (Roxinho, Tião Miranda e 1000tinho, 1983), D2 se revela convincente cantor de partido alto. E, de quebra, ainda lembra que o irreverente Na Aba (Trambique, Paulinho Correa e Ney Silva, 1982) –  samba associado a Martinho da Vila por conta da bem-sucedida gravação de 1984 – foi, a rigor, lançado por Bezerra dois anos antes. Três anos depois de fazer sucesso com Pega Eu (Criolo Doido, 1979), quando o partideiro pernambucano – radicado no Rio de Janeiro (RJ) desde a década de 50 - ainda dava seus primeiros passos na carreira fonográfica e gravava pela pequena CID. Com bela capa que parodia a imagem antológica do álbum Eu Não Sou Santo (1992), com o detalhe de que o rapper-sambista é crucificado com dois microfones no lugar de armas, o CD Marcelo D2 Canta Bezerra da Silva é tributo tão reverente quanto linear à obra de um sambista tido como indigesto por dar voz – como os rappers, aliás – a uma parcela da sociedade que a elite prefere ignorar ou manter calada porque o  discurso do "povo sofredor" é incômodo.

2 comentários:

Mauro Ferreira disse...

Bezerra da Silva (1927 – 2005) se tornou evangélico no fim da vida sem que a conversão alterasse a sua imagem de malandro e de cantor de bandido. “Na verdade, eu sou um cronista / Que transmite o dia a dia do meu povo sofredor”, tentou esclarecer Bezerra, bem antes da conversão, em Partideiro sem Nó na Garganta (Adelzonilton, Nilo Dias e Franco Teixeira, 1992), um dos 14 sambas incluídos na seleção final do bom CD Marcelo D2 Canta Bezerra da Silva, recém-lançado pela EMI Music. O rapper se converte em sambista e cantor ao abordar com reverência repertório que guarda afinidades temáticas com o cancioneiro do Planet Hemp – a ponto de os versos de A Semente (Roxinho, Tião Miranda, Felipão e Walmir da Purificação, 1987) se ajustarem com naturalidade ao canto de D2, assumido usuário de maconha. Mais do que pela temática, o sexto álbum solo do rapper soa inusitado na discografia do artista por reproduzir a sonoridade tradicional do samba de morro. Mérito do produtor Leandro Sapucahy - com quem D2 dialoga nos versos de A Necessidade (José Garcia e Jorge Garcia, 1977), com direito a alguns improvisos autorreferentes na letra – e do pianista Jota Moraes, recrutado para fazer os arranjos de todas as faixas. Até um trio feminino de vocalistas (Carla Pietro, Keilla Santos e Neth Bonfim) foi arregimentado para evocar o coro do conjunto As Gatas, presença recorrente em discos de samba dos anos 70 e 80. Entre sambas que fazem valiosas crônicas sociais sob a ótica do povo marginalizado - caso de Meu Bom Juiz (Beto sem Braço e Serginho Meriti, 1986) - e outros que recorrem a um humor mais popularesco, como Minha Sogra Parece Sapatão (Roxinho, Tião Miranda e 1000tinho, 1983), D2 se revela convincente cantor de partido alto. E, de quebra, ainda lembra que o irreverente Na Aba (Trambique, Paulinho Correa e Ney Silva, 1982) – samba associado a Martinho da Vila por conta da bem-sucedida gravação de 1984 – foi, a rigor, lançado por Bezerra dois anos antes. Três anos depois de fazer sucesso com Pega Eu (Criolo Doido, 1979), quando o partideiro pernambucano – radicado no Rio de Janeiro (RJ) desde a década de 50 - ainda dava seus primeiros passos na carreira fonográfica e gravava pela pequena CID. Com bela capa que parodia a imagem antológica do álbum Eu Não Sou Santo (1992), com o detalhe de que o rapper-sambista é crucificado com dois microfones no lugar de armas, o CD Marcelo D2 Canta Bezerra da Silva é tributo tão reverente quanto linear à obra de um sambista tido como indigesto por dar voz – como os rappers, aliás – a uma parcela da sociedade que a elite prefere ignorar ou manter calada porque o discurso do "povo sofredor" é incômodo.

Gill Sampaio Ominirò disse...

Não páro de ouvir este CD. É maravilhoso em certos momentos e apenas precisos em outros.
Ouvir Malandragem dá um tempo é a confirmação da proximidade ideológica do homegeado e do homenageante.
Nos extras, conseguidos pela net, ouvir Candidato Caô, Caô tem sido uma surpresa formidável, nem imagina que D2 pudesse cantar e bem do ponto de vista do partido alto. Essa gravação ficou perfeita, tão boa quanto a de Bezerra (claro, faltando a verdade visceral impossível de ser praticada por quem não vive a realidade do morro), quanto a do Rappa com Bezerra. Parabéns D2, você vem se superando na MPB.