Título: Chico
Artista: Chico Buarque
Gravadora: Biscoito Fino
Cotação: * * * *
Nas lojas a partir desta sexta-feira, 22 de julho de 2011, Chico é belo disco de Chico Buarque. Em 31 minutos, o álbum marcha no tempo maduro de seu artista sem sobressaltos e êxtases. Não há sobressaltos porque nenhuma das dez faixas põe em dúvida a engenhosidade de um compositor que desde seu aparecimento, em meados dos anos 60, já se impôs de imediato entre os maiores criadores da música brasileira - artista que se agigantou na década de 70 quando sua obra foi farol que tentou acender todas as luzes possíveis em um Brasil escurecido pelas nuvens negras da ditadura. Tampouco haverá êxtases para quem for procurar em Chico o Buarque desses anos de produção áurea. O tempo é outro. E, para atestar a evolução do tempo, basta confrontar a seminal A Banda (Chico Buarque, 1966) com Rubato (Chico Buarque e Jorge Helder, 2011), dobrado que marcha em compasso ternário, em sintonia com o título em italiano que pode significar o roubo do tempo de uma canção. Na letra, a parte que lhe coube na parceria com o baixista de Chico, Buarque narra o movimento contínuo de música que troca incessantemente de mãos e musas. As narrativas urdidas nas letras de Chico, aliás, refletem o contínuo exercício do compositor no ofício da literatura - e não somente porque o narrador desmemoriado de Barafunda (Chico Buarque, 2001) - samba temperado com molho de salsa pelo piano de João Rebouças - bem poderia ser o ancião que protagoniza o último romance do escritor, Leite Derramado (2009). As visões do caminhante solitário expostas nos versos de Querido Diário (Chico Buarque, 2011) - toada que tem sua ruralidade acentuada pela viola de Jaime Alem em contraponto com as cordas eruditas do Quarteto Radamés Gnattali - renderiam outro romance ou filme sobre as grandezas e mesquinharias do povo brasileiro. No confronto do artista com seu tempo, Essa Pequena (Chico Buarque, 2001) - pseudoblues ambientado em leve clima jazzy - reflete sobre os distintos fusos horários que pedem urgência no romance entre homem velho e mulher jovem. "Meu tempo e curto, o tempo dela sobra / Meu cabelo é cinza, o dela é cor de abóbora", compara Chico nos versos iniciais da canção, possível retrato de seu envolvimento afetivo com a cantora Thaís Gulin, convidada da valsa-canção Se Eu Soubesse (Chico Buarque, 2011), já apresentada ao público em abril no segundo disco de Gulin com participação do compositor. As duas gravações em dueto são diferentes, mas igualmente harmoniosas. A harpa de Cristina Braga acentua o clima onírico das divagações afetivas da letra no segundo dueto. E aqui cabe ressaltar que Chico é, em essência, um disco de canções de amor. Mas até as dores de amores são filtradas pelo tempo da maturidade. O abandono é ruminado com resignação nos versos de Sem Você 2 (Chico Buarque, 2011), faixa doída em que o violonista e diretor musical do disco, Luiz Claudio Ramos, cita na introdução a canção que é a musa inspiradora do tema, Sem Você (Tom Jobim e Vinicius de Moraes, 1959). Contudo, em qualquer tempo, a vida pode ser sonho. E é nas asas da sua imaginação que o compositor viaja virtualmente até Moscou na ânsia de encontrar a amada personificada já no título de Nina (Chico Buarque, 2011), linda valsa que tem sua tonalidade russa ressaltada pelo acordeom de Marcos Nimrichter. Deste lado do Atlântico, o jogo do amor se arma entre fogueiras de São João, símbolos do universo nordestino evocado na letra de Tipo um Baião (Chico Buarque), tema que começa como canção e se transforma em baião, em exemplo do requinte harmônico que envolve Chico da primeira à última das dez faixas. Pena que esse jogo amoroso não ganhe a malícia e a ginga exigidas pelo já conhecido samba Sou Eu (Chico Buarque e Ivan Lins, 2009). Regravado pelo compositor em dueto com Wilson das Neves, o grande samba se apequena no registro quase sem vida de Chico. Em contrapartida, o álbum se agiganta em seu fim. De tom afro que remete aos tempos do Brasil imperial, cujo linguajar é reproduzido por Chico em sua letra, o samba Sinhá (Chico Buarque e João Bosco) é a obra-prima do disco. O violão e os vocais de Bosco adensam as súplicas do escravo em vias de ser torturado pelo seu senhor pela acusação de ter visto nua a sinhá do título. Música que talvez possa até fazer sucesso se ganhar a voz de uma cantora identificada com o universo afro-brasileiro, Sinhá fecha brilhantemente álbum que - a despeito de ser tijolo de menor peso na grandiosa construção buarquiana como seu antecessor Carioca (2006) - resulta sedutor. Urdido no tempo todo próprio de seu artista, Chico é retrato sofisticado deste artista quando maduro.
14 comentários:
Nas lojas a partir desta sexta-feira, 22 de julho de 2011, Chico é belo disco de Chico Buarque. Em 31 minutos, o álbum marcha no tempo maduro de seu artista sem sobressaltos e êxtases. Não há sobressaltos porque nenhuma das dez faixas põe em dúvida a engenhosidade de um compositor que desde seu aparecimento, em meados dos anos 60, já se impôs de imediato entre os maiores criadores da música brasileira - artista que se agigantou na década de 70 quando sua obra foi farol que tentou acender todas as luzes possíveis em um Brasil escurecido pelas nuvens negras da ditadura. Tampouco haverá êxtases para quem for procurar em Chico o Buarque desses anos de produção áurea. O tempo é outro. E, para atestar a evolução do tempo, basta confrontar a seminal A Banda (Chico Buarque, 1966) com Rubato (Chico Buarque e Jorge Helder, 2011), dobrado que marcha em compasso ternário, em sintonia com o título em italiano que pode significar o roubo do tempo de uma canção. Na letra, a parte que lhe coube na parceria com o baixista de Chico, Buarque narra o movimento contínuo de música que troca incessantemente de mãos e musas. As narrativas urdidas nas letras de Chico, aliás, refletem o contínuo exercício do compositor no ofício da literatura - e não somente porque o narrador desmemoriado de Barafunda (Chico Buarque, 2001) - samba temperado com molho de salsa pelo piano de João Rebouças - bem poderia ser o ancião que protagoniza o último romance do escritor, Leite Derramado (2009). As visões do caminhante solitário expostas nos versos de Querido Diário (Chico Buarque, 2011) - toada que tem sua ruralidade acentuada pela viola de Jaime Alem em contraponto com as cordas eruditas do Quarteto Radamés Gnattali - renderiam outro romance ou filme sobre as grandezas e mesquinharias do povo brasileiro.
No confronto do artista com seu tempo, Essa Pequena (Chico Buarque, 2001) - pseudoblues ambientado em leve clima jazzy - reflete sobre os distintos fusos horários que pedem urgência no romance entre homem velho e mulher jovem. "Meu tempo e curto, o tempo dela sobra / Meu cabelo é cinza, o dela é cor de abóbora", compara Chico nos versos iniciais da canção, possível retrato de seu envolvimento afetivo com a cantora Thaís Gulin, convidada da valsa-canção Se Eu Soubesse (Chico Buarque, 2011), já apresentada ao público em abril no segundo disco de Gulin com participação do compositor. As duas gravações em dueto são diferentes, mas igualmente harmoniosas. A harpa de Cristina Braga acentua o clima onírico das divagações afetivas da letra no segundo dueto. E aqui cabe ressaltar que Chico é, em essência, um disco de canções de amor. Mas até as dores de amores são filtradas pelo tempo da maturidade. O abandono é ruminado com resignação nos versos de Sem Você 2 (Chico Buarque, 2011), faixa em que o violonista e diretor musical do disco, Luiz Claudio Ramos, cita na introdução a canção que é a musa inspiradora do tema, Sem Você (Tom Jobim e Vinicius de Moraes, 1959). Contudo, em qualquer tempo, a vida pode ser sonho. E é nas asas da sua imaginação que o compositor viaja virtualmente até Moscou na ânsia de encontrar a amada personificada já no título de Nina (Chico Buarque, 2011), linda valsa que tem sua tonalidade russa ressaltada pelo acordeom de Marcos Nimrichter. Deste lado do Atlântico, o jogo do amor se arma entre fogueiras de São João, símbolos do universo nordestino evocado na letra de Tipo um Baião (Chico Buarque), tema que começa como canção e se transforma em baião, em exemplo do requinte harmônico que envolve Chico da primeira à última das dez faixas. Pena que esse jogo amoroso não ganhe a malícia e a ginga exigidas pelo já conhecido samba Sou Eu (Chico Buarque e Ivan Lins, 2009). Regravado pelo compositor em dueto com Wilson das Neves, o grande samba se apequena no registro quase sem vida de Chico. Em contrapartida, o álbum se agiganta em seu fim. De tom afro que remete aos tempos do Brasil imperial, cujo linguajar é reproduzido por Chico em sua letra, o samba Sinhá (Chico Buarque e João Bosco) é a obra-prima do disco. O violão e os vocais de Bosco adensam as súplicas do escravo em vias de ser torturado pelo seu senhor pela acusação de ter visto nua a sinhá do título. Música que talvez possa até fazer sucesso se ganhar a voz de uma cantora identificada com o universo afro-brasileiro, Sinhá fecha brilhantemente álbum que - a despeito de ser tijolo de menor peso na grandiosa construção buarquiana como seu antecessor Carioca (2006) - resulta sedutor. Urdido no tempo todo próprio de seu artista, Chico é retrato sofisticado deste artista quando maduro.
bonito texto, Mauro, embora note certa contradição nele. Você põe o disco lá em cima o tempo todo e depois diz no final que ele não tem tanto peso na obra do Chico.
A versão digital da revista Veja considerou o verso "Amar uma mulher sem orifício”, da canção Querido Diário, o pior da MPB no século XXI. É possível que a sonoridade e o significado da palavra “orifício” causem um desconforto, mas descontextualizado até Fernando Pessoa parece estranho (bom, Fernando Pessoa não). A letra da canção é um simples conjunto de notas cotidianas sem muita profundidade, tal qual acontecimentos dispersos nas páginas de um diário, sobre o trânsito, um cachorro de rua ou um encontro casual com amigos (“Hoje topei com alguns conhecidos meus/ Me dão bom-dia, cheios de carinho”). O polêmico verso aparece pouco depois: “Hoje pensei em ter religião/ De alguma ovelha, talvez, fazer sacrifício/ Por uma estátua ter adoração/ Amar uma mulher sem orifício”. Há quem diga que o “genial” Chico Buarque tenha ficado para trás e que o epíteto de “melhor letrista da música brasileira” já não lhe caiba tão bem. Comparações com outros contemporâneos em atividade, como Gilberto Gil e Caetano Veloso, são quase inevitáveis, este tenta manter o frescor da sua obra e nunca teve problemas com nenhum tipo de orifício, vide o verso “A tua presença/ entra pelos sete buracos da minha cabeça”. Amar uma mulher sem orifício não sugere muitas possibilidades, provavelmente seja um amor platônico, um amor sem sexo ou um amor que exista além do sexo. Orifício é uma passagem estreita, um pequeno furo. O uso do substantivo no singular serve para enfatizar a ideia de único caminho, única oportunidade - que não há. Uma mulher sem orifício talvez seja, simplesmente, um desejo inalcançável. Certamente, havia outras maneiras de dizer a mesma coisa, ou rimar sacrifício com artifício, início, desperdício ou fictício - cada poeta com suas palavras -, contudo, dificilmente provocaria o mesmo estranhamento. De repente, para um homem de 67 anos, o amor sem sexo ou um amor platônico seja realmente isso: um estranhamento.
Disco arejado, canções deliciosas bem longe do sonolento Carioca de 2006, ainda bem
"Hoje pensei em ter religião/ De alguma ovelha, talvez, fazer sacrifício/ Por uma estátua ter adoração/ Amar uma mulher sem orifício"
Pra mim essa mulher sem orifício em que Chico fala seria a Virgem Maria.
Eu li por aí que o dito cujo pensa em nem fazer as tradicionais turnês que faz a cada disco. Terminou de gravar, já está em outra.
Se bem que o trabalho para ele seria nenhum, convenhamos. A banda seria a de sempre (João Rebouças, Jorge Helder, Chico Batera, Wilson das Neves, Luiz Cláudio Ramos, Marcelo Bernardes e Bia Paes Leme, querem apostar?), ingressos esgotados com umas três horas de venda, o pessoal se deleitando com qualquer "a" que o Francisco fale, enfim, tudo garantido. Sem sobressaltos e êxtases, como comentou Mauro.
À primeira vista, é meio sem-graça. Mas, ora bolas, quem disse que Chico tem de gravar todo ano? Mania da gente pensar que a indústria fonográfica ainda apita algo, como nos anos 1970 e 1980...
Felipe dos Santos Souza
Quanta besteira, por causa de um orifício, desculpas da revista veja e similares para pegar no pé do poeta.
Em tempos em que todos querem expor e legalizar seus orifícios, o poeta no auge de sua criatividade resolveu amar sem orifícios...
Que povo difícil...
Querem liberdade mas não largam mão da mediocridade...
Salve Chico Buarque, que envelhece com elegancia, criatividade e sofisticação, com ou sem orificios...
Neto, a Veja não tem imparcialidade pra falar do Chico.
Aliás, pra falar de ninguém.
Felipe, à primeira e tb à última vista os últimos cds/turnês do Chico me parecem bastante enfadonhos. Como se ele fizesse mais por "obrigação" que prazer.
Mauro, lendo sua resenha noto que o tom usado e os argumentos prós e contras servem tanto pra esse como também para os 3/4 últimos dele.
Por último, gostei do verso sobre os orifícios e tb da música do Diário(me mandaram por email há umas duas semanas), mas não me animo a baixar o disco pra ouvir.
"pseudoblues" é realmente uma descrição muito esclarecedora. Sempre achei que se uma canção não fosse um determinado gênero, seria outro. Mas não, agora também temos os "peseudos". Curioso. Vai ver o Chico tá lançando um novo gênero musical. Ou o Mauro...
Quando o disco novo é Caetano, espero surpresas, subjetividades escondidas, a inquietação que lhe é peculiar, provocações. Quando é Chico, espero a mesma banda de sempre, as letras bem acabadas de sempre, nada de novo, não vejo diferenças gritantes de Paratodos, até hoje, mas ainda assim...
Neste sentido o título é certeiro.É só apertar o play e deixar fluir.
a geração 1960 ainda não foi superada em qualidade musical pelas gerações posteriores, mas, desde 1982, salvo uma ou outra canção, não fez mais nada que valha a pena comunicar ao público. O próprio Chico já revelou em entreviusta que não tem mais gás para compor, e a prova são esses registros meramente burocráticos e que não acrescentam absolutamente nada ao que produziu no período áureo. Para completar essa *estética* depressiva, ainda embalam os cds com capas sem nenhuma marca gráfica de estilo, com as mesmas poses falsamente despretensiosas.
Diante disso tudo, Carmen Miranda chamaria de *borocochô*, e Aracy de Almeida bradaria: *Um xarope!*
Mauro, parabéns pela análise sobre o belo novo trabalho do Chico. É preciso ser maduro, não só aos pés do ouvido, para poder apreciar a essência que a obra do Chico ganhou nos últimos 20 anos.
Fica aqui o convite para que você possa conhecer o meu blog: www.eduardo-canntho.blogspot.com
Abraço
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