Título: Indivisível
Artista: Zé Miguel Wisnik
Gravadora: Circus
Cotação: * * * * 1/2
A trilha sonora do Brasil dos anos 2000 seria menos pobre se as multidões que consomem a atual música sertaneja cantassem Tristeza do Zé, tema que dialoga inteligentemente com Tristeza do Jeca (Angelino de Oliveira, 1918), um dos clássicos nacionais do gênero. Tristeza do Zé é cantada por seus compositores, Zé Miguel Wisnik e Luiz Tatit, em Indivisível, álbum duplo recém-lançado por Wisnik. Mas é triste saber que o Brasil não vai cantar Tristeza do Zé, tema cujo acento rural é acentuado pelo acordeom de Marcelo Jeneci, nome recorrente na ficha técnica das 25 faixas deste quarto título da discografia do compositor, pianista e escritor. Um dos mais refinados compositores do Brasil, hoje com 62 anos, o paulista Wisnik compõe pérolas para poucos. Valorizado visualmente por projeto gráfico (de Elaine Ramos) que aglutina os dois CDs em embalagem que entrelaça as iniciais do artista, Indivisível reúne 26 pérolas que poucos vão ouvir. A maioria é inédita. Algumas já foram gravadas por nomes como Zélia Duncan e Elza Soares, já que Indivisível reúne a mais expressiva produção autoral de Wisnik pós-2003, ano em que o compositor lançou seu último álbum, Pérolas aos Poucos. Os dois discos são gêmeos univitelinos, inseparáveis, indivisíveis, ligados até por suas diferenças simétricas. O CD de capa azul e encarte marrom é conduzido pelo violão de Arthur Nestrovski. O CD de capa marrom e encarte azul é guiado pelo piano tocado pelo próprio Wisnik (exceto em Canção Necessária, parceria de Guinga com Wisnik, faixa na qual Jeneci assume o piano). Irmanados em sua sofisticação, os dois álbuns apresentam tantas músicas lindas que talvez uma obra-prima como O Primeiro Fole - a primeira melodia composta por Jeneci, ora gravada com a letra feita por Wisnik - passe até despercebida. "A letra fala do piano, que é o nosso instrumento, da sanfona, que é instrumento dele, e do lugar misterioso onde a gente vai buscar as palavras para as canções”, conceitua Wisnik, que também arrisca registro mais intenso ao regravar Feito pra Acabar, parceria com Jeneci e com Paulo Neves que deu título ao álbum lançado pelo recorrente Jeneci em 2010. Produzido por Alê Siqueira, Indivísivel é disco embebido em lirismo e em poesia, inclusive pelo fato de Wisnik ter musicado versos de Antonio Cícero (Os Ilhéus, outra grande faixa do CD conduzido pelo piano), Carlos Drummond de Andrade (Anoitecer), Fernando Pessoa (Tenho Dó das Estrelas, tema gravado por Jussara Silveira em seu vindouro álbum Ame ou se Mande) e Gregório de Matos (Mortal Loucura, da trilha sonora do balé Onqotô, apresentado pelo Grupo Corpo em 2005). E até porque a letra escrita por Wisnik para a camerística Ilusão Real é pura poesia que resiste bem sem a melodia intrincada composta por Guinga. Tal rebuscamento é perceptível também na melodia sinuosa composta por Chico Buarque para a música que veio a se chamar Embebedado quando recebeu a letra precisa de Wisnik. Lançada por Gal Costa em seu álbum Hoje (2005), Embebedado é rebobinada por Wisnik em dueto luxuoso com Chico. No todo, o CD guiado pelo piano resulta mais denso, mais sisudo. No disco conduzido pelo violão, há mais espaço para a leveza e até para o humor detectado em temas como o samba Sem Fundos (Zé Miguel Wisnik e Vadim Nikitim). E por falar em samba, Sócrates Brasileiro (Zé Miguel Wisnik) - já gravado por Ná Ozzetti - celebra o famoso jogador (atualmente às voltas com graves problemas de saúde) em letra cheia de poesia. Em tom mais carnavelesco, Eva e Adão ou Marchinha da Família (Zé Miguel Wisnik, Ana Tatit e Zé Tatit) defende com descontração a construção de famílias derivadas de uniões homoafetivas. Mas há também melancolia no disco guiado pelo violão, perceptível já na pungente faixa de abertura, Serenata (Franz Schubert e Ludwig Rellstab), traduzida para o idioma musical brasileiro na forma de toada pelo violonista Arthur Nestrovski. Há algo também de melancolia sertaneja em Eu Vi, versão de Wisnik para tema de Henri Salvador (1917 - 2008) e M. Modo lançado por Henri em seu álbum Chambre Avec Vue (2001). Entre muitos temas inéditos (como o Acalanto de Wisnik com Nestrovski, raro momento em que o alto nível de inspiração do repertório cai um pouco) e algumas regravações (Presente, Cacilda, Se Meu Mundo Cair), o conceitual Indivisível reitera a grandeza da obra de Zé Miguel Wisnik, mestre em oferecer pérolas para poucos. Como tem Zé nesse triste Brasil sertanejo!...
10 comentários:
A trilha sonora do Brasil dos anos 2000 seria menos pobre se as multidões que consomem a atual música sertaneja cantassem Tristeza do Zé, tema que dialoga inteligentemente com Tristeza do Jeca (Angelino de Oliveira, 1918), um dos clássicos nacionais do gênero. Tristeza do Zé é cantada por seus compositores, Zé Miguel Wisnik e Luiz Tatit, em Indivisível, álbum duplo recém-lançado por Wisnik. Mas é triste saber que o Brasil não vai cantar Tristeza do Zé, tema cujo acento rural é acentuado pelo acordeom de Marcelo Jeneci, nome recorrente na ficha técnica das 25 faixas deste quarto título da discografia do compositor, pianista e escritor. Um dos mais refinados compositores do Brasil, hoje com 62 anos, o paulista Wisnik compõe pérolas para poucos. Valorizado visualmente por projeto gráfico (de Elaine Ramos) que aglutina os dois CDs em embalagem que entrelaça as iniciais do artista, Indivisível reúne 26 pérolas que poucos vão ouvir. A maioria é inédita. Algumas já foram gravadas por nomes como Zélia Duncan e Elza Soares, já que Indivisível reúne a mais expressiva produção autoral de Wisnik pós-2003, ano em que o compositor lançou seu último álbum, Pérolas aos Poucos. Os dois discos são gêmeos univitelinos, inseparáveis, indivisíveis, ligados até por suas diferenças simétricas. O CD de capa azul e encarte marrom é conduzido pelo violão de Arthur Nestrovski. O CD de capa marrom e encarte azul é guiado pelo piano tocado pelo próprio Wisnik (exceto em Canção Necessária, parceria de Guinga com Wisnik, faixa na qual Jeneci assume o piano). Irmanados em sua sofisticação, os dois álbuns apresentam tantas músicas lindas que talvez uma obra-prima como O Primeiro Fole - a primeira melodia composta por Jeneci, ora gravada com a letra feita por Wisnik - passe até despercebida. "A letra fala do piano, que é o nosso instrumento, da sanfona, que é instrumento dele, e do lugar misterioso onde a gente vai buscar as palavras para as canções”, conceitua Wisnik, que também arrisca registro mais intenso ao regravar Feito pra Acabar, parceria com Jeneci e com Paulo Neves que deu título ao álbum lançado pelo recorrente Jeneci em 2010.
Produzido por Alê Siqueira, Indivísivel é disco embebido em lirismo e em poesia, inclusive pelo fato de Wisnik ter musicado versos de Antonio Cícero (Os Ilhéus, outra grande faixa do CD conduzido pelo piano), Carlos Drummond de Andrade (Anoitecer), Fernando Pessoa (Tenho Dó das Estrelas, tema gravado por Jussara Silveira em seu vindouro álbum Ame ou se Mande) e Gregório de Matos (Mortal Loucura, da trilha sonora do balé Onqotô, apresentado pelo Grupo Corpo em 2005). E até porque a letra escrita por Wisnik para a camerística Ilusão Real é pura poesia que resiste bem sem a melodia intrincada composta por Guinga. Tal rebuscamento é perceptível também na melodia sinuosa composta por Chico Buarque para a música que veio a se chamar Embebedado quando recebeu a letra precisa de Wisnik. Lançada por Gal Costa em seu álbum Hoje (2005), Embebedado é rebobinada por Wisnik em dueto luxuoso com Chico. No todo, o CD guiado pelo piano resulta mais denso, mais sisudo. No disco conduzido pelo violão, há mais espaço para a leveza e até para o humor detectado em temas como o samba Sem Fundos (Zé Miguel Wisnik e Vadim Nikitim). E por falar em samba, Sócrates Brasileiro (Zé Miguel Wisnik) - já gravado por Ná Ozzetti - celebra o famoso jogador (atualmente às voltas com graves problemas de saúde) em letra cheia de poesia. Em tom mais carnavelesco, Eva e Adão ou Marchinha da Família (Zé Miguel Wisnik, Ana Tatit e Zé Tatit) defende com descontração a construção de famílias derivadas de uniões homoafetivas. Mas há também melancolia no disco guiado pelo violão, perceptível já na pungente faixa de abertura, Serenata (Franz Schubert e Ludwig Rellstab), traduzida para o idioma musical brasileiro na forma de toada pelo violonista Arthur Nestrovski. Há algo também de melancolia sertaneja em Eu Vi, versão de Wisnik para tema de Henri Salvador (1917 - 2008) e M. Modo lançado por Henri em seu álbum Chambre Avec Vue (2001). Entre muitos temas inéditos (como o Acalanto de Wisnik com Nestrovski, raro momento em que o alto nível de inspiração do repertório cai um pouco) e algumas regravações (Presente, Cacilda, Se Meu Mundo Cair), o conceitual Indivisível reitera a grandeza da obra de Zé Miguel Wisnik, mestre em oferecer pérolas para poucos. Como tem Zé nesse triste Brasil sertanejo!...
Obrigado Mauro por descrever e celebrar esses dois álbuns sensíveis e essenciais de Wisnik. Capa inspirada, letras interessantes e melodias de ouro.Salve o indivisível!
Conheci Zé Miguel através da gravação de "Cacilda" na voz de Bethânia (circa... 99) e desde então sou apaixonado por ele. O disco de Evelin Hecker, o Onqotô, as parcerias, tudo. Sou apaixonado por ele.
Um belo disco, com ótimas participações e sem dúvidas, a capa do ano. Só o detalhe do ímã que une os dois Cds já é pra ficar na história do designer gráfico.
E pra desanimar os que vivem torcendo para o fim dos CDs; esse é um dos mais vendidos aqui na Passa Disco.
Parabéns Mauro por mostrar essas pérolas no seu blog.
E por falar em pérolas, foram lançados recentemente aqui no Recife os ótimos "Rabequeiros de Pernambuco" (reunindo 24 rabequeiros de todo o estado) e "Canções Brasileiras" de Lêda Dias (em vinil e CD).
O CD é realmente lindíssimo!
Oportunidade de ouvir sua versão para canções que já foram gravadas por Bethânia "Cacilda", Zizi Possi "Se meu mundo cair", Eveline Hecker "Tempo sem tempo", Monica Salmaso "Mortal Loucura".
Mas como bem citado no início da resenha a beleza de "Tristeza do Zé" já paga o CD.
Aplausos!
O Brasil musical seria menos pobre se ouvisse de maneira geral a obra de Zé Miguel Wisnik e Luiz Tatit nas vozes de alguns que os cantaram.
Coincidentemente, ambos foram meus professores na USP quando da minha primeira graduação, em Letras; Zé de literatura brasileira e Tatit de linguistica. Professores excepcionais, músicos extraordinários. Uma parceria muito feliz na música brasileira.
E ainda o disco é produzido pelo Alê. Deve ser uma grande obra.
Bom, sou suspeito pra falar do Wisnik, admiro-o muito, tanto que gravei "Libra", de sua autoria, em meu primeiro cd "De noite o sol ilumina".
Pode ser ouvida aqui http://www.youtube.com/watch?v=YrVU5jsZzt4
"Indivisível" é lindo, feito para ouvidos sensíveis.
Mauro, pra trilha do Brasil ser menos pobre, que tal vc só gastar espaço nesse blog para falar de artistas como o Wisnik, esquecendo ''sertanejos'' como o Daniel, assunto de alguns posts abaixo?
Caro Mauro, antes de mais nada, Wisnik é um diletante, saborosíssimo de se ouvir e ver. Pergunto (talvez obviamente): seriam as capas destes discos de Wisnik referências ao 'Livro Azul' e 'Livro Marrom' de Wittgenstein? Não seria estranho se assim o fosse... Obrigado e um abraço!
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