Mauro Ferreira no G1

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segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Zélia aquieta o espírito desassossegado de Itamar entre luzes e sombras

Resenha de show
Título: Tudo esclarecido
Artista: Zélia Duncan
Local: Teatro Paulo Autran - Sesc Pinheiros (São Paulo, SP)
Data: 12 de janeiro de 2013
Foto: Divulgação / Roberto Setton
Cotação: * * * * 1/2

É pelo sabor do gesto de bendizer a obra amaldiçoada de (grande) compositor que Zélia Duncan dá voz em cena a 26 músicas de Itamar Assumpção (1949 - 2003), contabilizadas as vinhetas e as citações feitas ao longo do roteiro do show Tudo esclarecido. Se o cancioneiro do compositor paulista era encarado como bicho de sete cabeças, a intérprete fluminense - a mais perfeita tradução pop da obra de Itamar - doma a fera em espetáculo de aura teatral inspirado no CD Zélia Duncan canta Itamar Assumpção - Tudo esclarecido, disco produzido por Kassin que se impôs instantaneamente como o melhor de 2012. Em cena, sob a direção de Isabel Teixeira, Zélia expõe angústias, dores e gozos de repertório criado sob a ótica e a poética do desassossego. Tal como seus antecessores Eu me transformo em outras (2004), Pré-pós-tudo-bossa-band (2005) e Pelo sabor do gesto (2009), o show Tudo esclarecido situa Zélia Duncan na linha de frente da música brasileira pelo fino acabamento da luz repleta de climas (de Alessandra Rodrigues e Cristiano Desideri), do figurino que ajuda Zélia a se transformar em outras na medida exigida pelas músicas (de Simone Mina), do cenário que evoca as orquídeas tão adoradas por Itamar (também de Simone Mina) e do som formatado sob a direção musical do baixista Ézio Filho. Tudo posto a serviço da iluminação de obra que jazia em poço escuro. Talvez pelo tom vanguardista da fase inicial dessa obra - ranço que, mesmo diluído ao longo do anos, impediu que o chamado grande público identificasse em Itamar a figura do artesão de belas canções. Talvez pela postura contestadora do compositor, de espírito underground, inquieto, ácido. Criações e criador talvez tenham estado sempre tão embaralhados no imaginário nacional que nunca conseguiram ser distinguidos a olho nu. Mas eis que Zélia Duncan encara a fera e, tal como faz no disco, mostra em cena que o bicho tem geralmente uma cabeça - a fervilhante mente de Itamar Assumpção - ou no máximo duas cabeças, já que a poeta Alice Ruiz é a parceira do Nego (ben) Dito em cinco músicas do roteiro estruturado em prólogo e quatro atos. Se tudo é busca no prólogo de ambiência teatral iniciado com Procurei (Itamar Assumpção, 2010), ao fim do quarto e último ato (Amanhecer) a canção Tudo esclarecido (Itamar Assumpção, 2012) arremata o show com precisão e sentencia que os grandes achados estão entre as coisas perdidas. De fato! Ao revirar o baú de Itamar com a cabeça e o coração, Zélia acha joia como o Bicho de 7 cabeças (Itamar Assumpção, 1993), lapidada ainda no prológo, quando a cortina de filó se abre e descortina a cena armada com requintada simplicidade, preparando o clima para o desfile de achados como a linda balada Mal menor (Itamar Assumpção, 1988), o samba-rock Cabelo duro (Itamar Assumpção, 2004) - eriçado com citação de Justo você Berenice (Itamar Assumpção, 2004) - e a sensual canção Tua boca (Itamar Assumpção, 1993), que já soa tão de Zélia quanto de Itamar. Imerso e acuado na intensidade metropolitana de São Paulo, o bicho-obra de uma ou duas cabeças aos poucos vai se ambientando com naturalidade no palco do Teatro Paulo Autran, no Sesc Pinheiros (SP). Não por acaso, Código de acesso (Itamar Assumpção, 1998) - música que gerou o título do quarto álbum de Zélia, Acesso (Warner Music, 1998) - dá a senha quando a cantora se transforma numa rapper e cita Venha até São Paulo (Itamar Assumpção, 1993) no número de tom funky. No confronto com os registros do disco, Isso não vai ficar assim (Itamar Assumpção, 1986) perde contundência e ganha (certa) doçura enquanto a intencional letargia de Noite torta (Itamar Assumpção, 1993) fica menos evidente no palco. Já as reflexões existenciais shakespearianas do samba É de estarrecer (Itamar Assumpção e Alice Ruiz, 2012) soam menos espirituosas em cena sem a presença de Martinho da Vila, convidado do disco. Em contrapartida, a interação entre a cantora e seu público dá sabor especial à balada Quem mandou (Itamar Assumpção e Alice Ruiz, 2012) no show. Que vai além do disco ao entrelaçar Ciúme doentio (Itamar Assumpção, 2010) com Ciúme do perfume (Itamar Assumpção, 1993). Nesse medley, o diretor musical Ézio Filho - piloto da banda que evidencia a guitarra (e o eventual bandolim) de Webster Santos em números como Fico louco (Itamar Assumpção, 1980), de pulsação crescente - brilha especialmente ao traduzir o clima das músicas sobre ciúme com a levada obsessiva do arranjo. Na sequência, já no meio do segundo ato (Noite baixa), Zélia solta o cabelo e se transforma na forrozeira arretada que anima Vê se me esquece (Itamar Assumpção e Alice Ruiz, 1993), cuja brasilidade ecoa três números depois em Quem canta seus males espanta (Itamar Assumpção, 1993). Na raivosa Zélia Mãe Joana (Itamar Assumpção, 2012), o baticum da banda - comandado pelo baterista e percussionista Lucio Vieira - sustenta as ameaças cuspidas em tom seco. Vinheta ambientada no terceiro ato (Noite alta), Fim de festa (Itamar Assumpção, 2004) antecipa o clima mais interiorizado de Milágrimas (Itamar Assumpção e Alice Ruiz, 1993), número de tons baixos em que Zélia se acompanha ao ukelele sob a luz minimalista direcionada à cantora pelos músicos da banda. No quarto e último ato, a pressão de A gruta da solidão (Itamar Assumpção, 2012) dá peso ao fim do show. Mas a cortina não se fecha definitivamente após a música-título do show Tudo esclarecido, um das seis inéditas lançadas por Zélia no disco editado pela gravadora Warner Music ao fim de 2012. No bom bis, Nego Dito (Itamar Assumpção, 1980) perfila o compositor homenageado em tom cortante antes do fecho - este, sim, definitivo - com Leonor (Itamar Assumpção, 2004), samba de tom descontraído. Entre luzes e sombras de show teatral, Zélia Duncan reanima, acalanta e aquieta o espírito desassossegado (da obra) de Itamar Assumpção.

* O blog Notas Musicais viajou a São Paulo (SP) a convite da gravadora Warner Music

5 comentários:

Mauro Ferreira disse...

É pelo sabor do gesto de bendizer a obra amaldiçoada de (grande) compositor que Zélia Duncan dá voz em cena a 26 músicas de Itamar Assumpção (1949 - 2003), contabilizadas as vinhetas e as citações feitas ao longo do roteiro do show Tudo esclarecido. Se o cancioneiro do compositor paulista era encarado como bicho de sete cabeças, a intérprete fluminense - a mais perfeita tradução pop da obra de Itamar - doma a fera em espetáculo de aura teatral inspirado no CD Zélia Duncan canta Itamar Assumpção - Tudo esclarecido, disco produzido por Kassin que se impôs instantaneamente como o melhor de 2012. Em cena, sob a direção de Isabel Teixeira, Zélia expõe angústias, dores e gozos de repertório criado sob a ótica e a poética do desassossego. Tal como seus antecessores Eu me transformo em outras (2004), Pré-pós-tudo-bossa-band (2005) e Pelo sabor do gesto (2009), o show Tudo esclarecido situa Zélia Duncan na linha de frente da música brasileira pelo fino acabamento da luz repleta de climas (de Alessandra Rodrigues e Cristiano Desideri), do figurino que ajuda Zélia a se transformar em outras na medida exigida pelas músicas (de Simone Mina), do cenário que evoca as orquídeas tão adoradas por Itamar (também de Simone Mina) e do som formatado sob a direção musical do baixista Ézio Filho. Tudo posto a serviço da iluminação de obra que jazia em poço escuro. Talvez pelo tom vanguardista da fase inicial dessa obra - ranço que, mesmo diluído ao longo do anos, impediu que o chamado grande público identificasse em Itamar a figura do artesão de belas canções. Talvez pela postura contestadora do compositor, de espírito underground, inquieto.Criações e criador talvez já tenham estado tão embaralhados no imaginário nacional que nunca conseguiram ser distinguidos a olho nu. Mas eis que Zélia Duncan encara a fera e, tal como faz no disco, mostra em cena que o bicho tem geralmente uma cabeça - a fervilhante mente de Itamar Assumpção - ou no máximo duas cabeças, já que a poeta Alice Ruiz é a parceira do Nego (ben) Dito em cinco músicas do roteiro estruturado em prólogo e quatro atos. Se tudo é busca no prólogo de ambiência teatral iniciado com Procurei (Itamar Assumpção, 2010), ao fim do quarto e último ato (Amanhecer) a canção Tudo esclarecido (Itamar Assumpção, 2012) arremata o show com precisão e sentencia que os grandes achados estão entre as coisas perdidas. De fato! Ao revirar o baú de Itamar com a cabeça e o coração, Zélia acha joia como o Bicho de 7 cabeças (Itamar Assumpção, 1993), lapidada ainda no prológo, quando a cortina de filó se abre e descortina a cena armada com requintada simplicidade, preparando o clima para o desfile de achados como a linda balada Mal menor (Itamar Assumpção, 1988), o samba-rock Cabelo duro (Itamar Assumpção, 2004) - eriçado com citação de Justo você Berenice (Itamar Assumpção, 2004) - e a sensual canção Tua boca (Itamar Assumpção, 1993), que já soa tão de Zélia quanto de Itamar. Imerso e acuado na intensidade metropolitana de São Paulo, o bicho-obra de uma ou duas cabeças aos poucos vai se ambientando com naturalidade no palco do Teatro Paulo Autran, no Sesc Pinheiros (SP). Não por acaso, Código de acesso (Itamar Assumpção, 1998) - música que gerou o título do quarto álbum de Zélia, Acesso (Warner Music, 1998) - dá a senha quando a cantora se transforma numa rapper e cita Venha até São Paulo (Itamar Assumpção, 1993) no número de tom funky. No confronto com os registros do disco, Isso não vai ficar assim (Itamar Assumpção, 1986) perde contundência e ganha (certa) doçura enquanto a intencional letargia de Noite torta (Itamar Assumpção, 1993) fica menos evidente no palco. Já as reflexões existenciais shakespearianas do samba É de estarrecer (Itamar Assumpção e Alice Ruiz, 2012) soam menos espirituosas em cena sem a presença de Martinho da Vila, convidado do disco.

Mauro Ferreira disse...

Em contrapartida, a interação entre a cantora e seu público dá sabor especial à balada Quem mandou (Itamar Assumpção e Alice Ruiz, 2012) no show. Que vai além do disco ao entrelaçar Ciúme doentio (Itamar Assumpção, 2010) com Ciúme do perfume (Itamar Assumpção, 1993). Nesse medley, o diretor musical Ézio Filho - piloto da banda que evidencia a guitarra (e o eventual bandolim) de Webster Santos em números como Fico louco (Itamar Assumpção, 1983), de pulsação crescente - brilha especialmente ao traduzir o clima das músicas sobre ciúme com a levada obsessiva do arranjo. Na sequência, já no meio do segundo ato (Noite baixa), Zélia solta o cabelo e se transforma na forrozeira arretada que anima Vê se me esquece (Itamar Assumpção e Alice Ruiz, 1993), cuja brasilidade ecoa três números depois em Quem canta seus males espanta (Itamar Assumpção, 1993). Na raivosa Zélia Mãe Joana (Itamar Assumpção, 2012), o baticum da banda - comandado pelo baterista e percussionista Lucio Vieira - sustenta as ameaças cuspidas em tom seco. Vinheta ambientada no terceiro ato (Noite alta), Fim de festa (Itamar Assumpção, 2004) antecipa o clima mais interiorizado de Milágrimas (Itamar Assumpção e Alice Ruiz, 1993), número de tons baixos em que Zélia se acompanha ao ukelele sob a luz minimalista direcionada à cantora pelos músicos da banda. No quarto e último ato, a pressão de A gruta da solidão (Itamar Assumpção, 2012) dá peso ao fim do show. Mas a cortina não se fecha definitivamente após a música-título do show Tudo esclarecido, um das seis inéditas lançadas por Zélia no disco editado pela gravadora Warner Music ao fim de 2012. No bom bis, Nego Dito (Itamar Assumpção, 1980) perfila o compositor homenageado em tom cortante antes do fecho - este, sim, definitivo - com Leonor (Itamar Assumpção, 2004), samba de tom descontraído. Entre luzes e sombras de show teatral, Zélia Duncan reanima, acalanta e aquieta o espírito desassossegado (da obra) de Itamar Assumpção.

* O blog Notas Musicais viajou a São Paulo (SP) a convite da gravadora Warner Music

Rafael disse...

Belo disco da Zélia. Acho que o show deve ser tão bom quanto. Que percorra as demais cidades o quanto antes!

Rogério disse...

Como eu já havia comentado aqui, o show é INCRÍVEL. Zélia se reiventa e cada projeto que lança é sempre com muita criatividade e delicadeza. Esse show não é diferente. Uma artista completa. Vi duas vezes e quero mais.

MARTA disse...

É um show incrível o que faz a Zélia Duncan. Que percorra os demais países de Latinoamérica, entre eles, a Colômbia, minha cidade Medellín. O tributo que ela faz com sua voz e sua interpretacao ao bendito Itamar é maravilhoso. É arte, é música e poesía.