Título: Quatro tons de Odair José
Artista: Odair José
Gravadora: Universal Music
Cotação: Assim sou eu... (* * * *), Odair José (* * * * 1/2), Lembranças (* * *) e Odair (* * 1/2)
Ao revelar a luta dos cantores e compositores ditos cafonas contra a censura da década de 70, batalha até então normalmente associada somente a medalhões da MPB como Chico Buarque e Milton Nascimento, o livro Eu não sou cachorro, não (Record, 2002) - escrito pelo jornalista e historiador Paulo César de Araújo - deu início a um processo de reavaliação da obra de Odair José que rendeu o tributo Vou tirar você desse lugar (Trama, 2006) e culminou com a edição de Praça Tiradentes (Saravá Discos, 2012), excelente álbum de inéditas em que Odair se conectou a nomes como Arnaldo Antunes e Chico César sob generosa produção de Zeca Baleiro. Onze anos após a publicação do livro de Araújo, a edição de Quatro Tons de Odair José - caixa que embala reedições de Assim sou eu... (1972), Odair José (1973), Lembranças (1974) e Odair (1975), os quatro primeiros álbuns gravados pelo artista na Polydor (o braço popular da extinta gravadora Philips) - presta valioso serviço à memória fonográfica brasileira por trazer para a era digital discos (inacreditavelmente até então nunca editados em CD) que permitem que a reavaliação da obra do artista seja feita a partir da análise de sua matéria-prima original. Produzida por Alice Soares para a Universal Music com o habitual requinte da série Tons, valorizada pelos colecionadores de discos por reeditar títulos raros com arte gráfica original (com reproduções das letras) e excelente remasterização (de Luigi Hoffer e Carlos Savalla), a caixa Quatro tons de Odair José expõe os momentos mais felizes da obra desse cantor e compositor goiano que obteve grande sucesso popular na primeira metade dos anos 70. Contudo, ao mesmo tempo em que expõem o excelente acabamento instrumental das gravações e o traço peculiar de cancioneiro que tocou de forma direta e corajosa em temas tabus como sexo e religião, sempre falando a língua do povo, as reedições destes quatro álbuns também revelam as limitações e contradições de um artista que, embora seja dono de produção autoral situada bem acima da média da canção popular, por vezes soou repetitivo em seus assuntos e caminhos melódicos. Tanto que ao tentar se renovar com a criação de O filho de José e Maria (1977), espécie de ópera-rock gravada em álbum editado já na RCA por conta de discordância na Philips, Odair viu ruir vendas e o sucesso popular, este nunca mais obtido na proporção alcançada no período áureo da Philips. Como recorda o jornalista Marcus Preto nos elucidativos textos escritos para contextualizar cada álbum na discografia de Odair, o cantor migrou da CBS (gravadora na qual já fazia expressivo sucesso popular) para a Philips porque queria se ver livre da estética da Jovem Guarda que lhe era imposta pelo produtor Rossini Pinto na CBS. Pois aí reside um mérito e uma contradição na discografia de Odair, que passou a ter seus LPs produzidos por Jairo Pires. Por mais que seu primeiro álbum na Philips, Assim sou sou eu... (1972), tenha arranjos requintados criados pelo maestro paranaense Waltel Blanco com bases tocadas pelos ótimos músicos que formariam em 1973 o trio carioca Azymuth, o d.n.a. de canções como Você chegou para me fazer sorrir (Odair José e Jorge Paiva), Três pontinhos mais... (Odair José e Jorge Paiva) e Seria muito bom fazer voltar (Odair José e Jorge Paiva) remetem à gênese pueril da Jovem Guarda. Mas a propalada influência do pop rock também pontua o disco, se fazendo notar sobretudo no arranjo de Vida que não para (Odair José e Silva Santos). De todo modo, o grande sucesso de Assim sou eu... foi Esta noite você vai ter que ser minha (José Pereira Jr. e Pisca). Nesta reedição, o álbum ganha faixa-bônus, Cristo, quem é você?, lançada originalmente no álbum Orações profanas (1972) e incluída na segunda tiragem de Assim sou eu..., LP que atingiria a marca das 200 mil cópias vendidas - número até modesto se confrontado com as alegadas 700 mil cópias vendidas do segundo álbum do cantor na Polydor, Odair José, pico de vendas e de criatividade na discografia do artista. É o disco em que, renovando a temática da canção popular brasileira, o cantor abordou dilemas delicados como o de ser mãe solteira (Deixa essa vergonha de lado, parceria de Odair com Andreia Teixeira) - personificada na letra na figura de uma empregada doméstica, reforçando o elo do artista com as classes populares - e o uso de anticoncepcional, assunto do megahit Uma vida só (Pare de tomar a pílula), canção que - como informa o texto de Marcus Preto - é da lavra solitária de Odair, embora seja oficialmente creditada a Ana Maria, que vem a ser a mulher de Carlos Guarani, então diretor artístico da Rádio Globo, autor da ideia de fazer música sobre a pílula, tema então muito em voga na sociedade. Com o reforço de Hyldon nas guitarras, Odair José é também o álbum de Cadê você? (Odair José), outro sucesso de disco luminoso em que o cantor remói amores perdidos em canções como Revista proibida (Odair José) - faixa que, de quebra, toca na questão da pornografia - e Eu, você e a praça (Odair José), música tristonha como outras tantas de Odair. Aliás, no cancioneiro do compositor, até a felicidade vem revestida de certa melancolia, como explicita o título da sertaneja Alegria triste (Pinga e Evaldo José), faixa de Lembranças, álbum de repertório menos sedutor, pontuado pelo suingue dos arranjos de José Roberto Bertrami, perceptível em especial na arrojada orquestração de Barra pesada (Jean Pierre e Donizette). As letras continuavam simples e diretas na abordagem de amor e sexo, como exemplificam os versos algo machistas de Cotidiano nº 3 (Odair José), canção sobre o desgaste do casamento por conta do desleixo da esposa com seu visual. Por isso mesmo, tais letras eram alvo da censura, que implicou com o título original da canção A primeira noite de um homem (Odair José e Eliane Maria Machado Barbosa), trocado para Noite de desejos. De todo modo, o compositor se revelou menos inspirado em Lembranças. Tanto que o grande sucesso do disco foi A noite mais linda do mundo (A felicidade) (Donizette e Marcelo), música alheia que atravessou gerações. E, se de fato o que existe na vida são momentos felizes como prega essa bela canção, os de Odair José na Polydor estavam chegando ao fim. Álbum arranjado por José Roberto Bertrami com Luiz Cláudio Ramos, Odair (1975) - ao qual se seguiu o LP Histórias e pensamentos (1976), omitido na caixa - reforça a impressão de desgaste sinalizada por Lembranças. Mesmo assim, vale mencionar A viagem (Odair José) - alusão vaga aos efeitos da maconha - e Dê um chega na tristeza (Odair José e Maxine), ode à alegria, sentimento rarefeito em cancioneiro que tem seus méritos. As reedições destes quatro álbuns do artista na ótima caixa Quatro tons de Odair José são fundamentais porque dão a real dimensão da importância do cancioneiro do artista, dono de obra que não deve ser superestimada como se Odair José fosse o genial compositor que o tempo se encarregou de mostrar que ele - afinal - não conseguiu ser ao longo dos anos, mas tampouco subestimada por conta de algumas belas melodias e da habilidade do cantor em se comunicar com as massas de forma original e sincera.
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Ao revelar a luta dos cantores e compositores ditos cafonas contra a censura da década de 70, batalha até então normalmente associada somente a medalhões da MPB como Chico Buarque e Milton Nascimento, o livro Eu não sou cachorro, não (Record, 2002) - escrito pelo jornalista e historiador Paulo César de Araújo - deu início a um processo de reavaliação da obra de Odair José que rendeu o tributo Vou tirar você desse lugar (Trama, 2006) e culminou com a edição de Praça Tiradentes (Saravá Discos, 2012), excelente álbum de inéditas em que Odair se conectou a nomes como Arnaldo Antunes e Chico César sob generosa produção de Zeca Baleiro. Onze anos após a publicação do livro de Araújo, a edição de Quatro Tons de Odair José - caixa que embala reedições de Assim sou eu... (1972), Odair José (1973), Lembranças (1974) e Odair (1975), os quatro primeiros álbuns gravados pelo artista na Polydor (o braço popular da extinta gravadora Philips) - presta valioso serviço à memória fonográfica brasileira por trazer para a era digital discos (inacreditavelmente até então nunca editados em CD) que permitem que a reavaliação da obra do artista seja feita a partir da análise de sua matéria-prima original. Produzida por Alice Soares para a Universal Music com o habitual requinte da série Tons, valorizada pelos colecionadores de discos por reeditar títulos raros com arte gráfica original (com reproduções das letras) e excelente remasterização (de Luigi Hoffer e Carlos Savalla), a caixa Quatro tons de Odair José expõe os momentos mais felizes da obra desse cantor e compositor goiano que obteve grande sucesso popular na primeira metade dos anos 70. Contudo, ao mesmo tempo em que expõem o excelente acabamento instrumental das gravações e o traço peculiar de cancioneiro que tocou de forma direta e corajosa em temas tabus como sexo e religião, sempre falando a língua do povo, as reedições destes quatro álbuns também revelam as limitações e contradições de um artista que, embora seja dono de produção autoral situada bem acima da média da canção popular, por vezes soou repetitivo em seus assuntos e caminhos melódicos. Tanto que ao tentar se renovar com a criação de O filho de José e Maria (1977), espécie de ópera-rock gravada em álbum editado já na RCA por conta de discordância na Philips, Odair viu ruir vendas e o sucesso popular, este nunca mais obtido na proporção alcançada no período áureo da Philips. Como recorda o jornalista Marcus Preto nos elucidativos textos escritos para contextualizar cada álbum na discografia de Odair, o cantor migrou da CBS (gravadora na qual já fazia expressivo sucesso popular) para a Philips porque queria se ver livre da estética da Jovem Guarda que lhe era imposta pelo produtor Rossini Pinto na CBS. Pois aí reside um mérito e uma contradição na discografia de Odair, que passou a ter seus LPs produzidos por Jairo Pires. Por mais que seu primeiro álbum na Philips, Assim sou sou eu... (1972), tenha arranjos requintados criados pelo maestro paranaense Waltel Blanco com bases tocadas pelos músicos que formariam em 1973 o trio carioca Azymuth, o d.n.a. de canções como Você chegou para me fazer sorrir (Odair José e Jorge Paiva), Três pontinhos mais... (Odair José e Jorge Paiva) e Seria muito bom fazer voltar (Odair José e Jorge Paiva) remetem à gênese pueril da Jovem Guarda. Mas a propalada influência do pop rock também pontua o disco, se fazendo notar sobretudo no arranjo de Vida que não para (Odair José e Silva Santos).
De todo modo, o grande sucesso de Assim sou eu... foi Esta noite você vai ter que ser minha (José Pereira Jr. e Pisca). Nesta reedição, o álbum ganha faixa-bônus, Cristo, quem é você?, lançada originalmente no álbum Orações profanas (1972) e incluída na segunda tiragem de Assim sou eu..., LP que atingiria a marca das 200 mil cópias vendidas - número até modesto se confrontado com as alegadas 700 mil cópias vendidas do segundo álbum do cantor na Polydor, Odair José, pico de vendas e de criatividade na discografia do artista. É o disco em que, renovando a temática da canção popular brasileira, o cantor abordou dilemas delicados como o de ser mãe solteira (Deixa essa vergonha de lado, parceria de Odair com Andreia Teixeira) - personificada na letra na figura de uma empregada doméstica, reforçando o elo do artista com as classes populares - e o uso de anticoncepcional, assunto do megahit Uma vida só (Pare de tomar a pílula), canção que - como informa o texto de Marcus Preto - é da lavra solitária de Odair, embora seja oficialmente creditada a Ana Maria, que vem a ser a mulher de Carlos Guarani, então diretor artístico da Rádio Globo, autor da ideia de fazer música sobre a pílula, tema então muito em voga na sociedade. Com o reforço de Hyldon nas guitarras, Odair José é também o álbum de Cadê você? (Odair José), outro sucesso de disco luminoso em que o cantor remói amores perdidos em canções como Revista proibida (Odair José) - faixa que, de quebra, toca na questão da pornografia - e Eu, você e a praça (Odair José), música tristonha como outras tantas de Odair. Aliás, no cancioneiro do compositor, até a felicidade vem revestida de certa melancolia, como explicita o título da sertaneja Alegria triste (Pinga e Evaldo José), faixa de Lembranças, álbum de repertório menos sedutor, pontuado pelo suingue dos arranjos de José Roberto Bertrami, perceptível em especial na arrojada orquestração de Barra pesada (Jean Pierre e Donizette). As letras continuavam simples e diretas na abordagem de amor e sexo, como exemplificam os versos algo machistas de Cotidiano nº 3 (Odair José), canção sobre o desgaste do casamento por conta do desleixo da esposa com seu visual. Por isso mesmo, tais letras eram alvo da censura, que implicou com o título original da canção A primeira noite de um homem (Odair José e Eliane Maria Machado Barbosa), trocado para Noite de desejos. De todo modo, o compositor se revelou menos inspirado em Lembranças. Tanto que o grande sucesso do disco foi A noite mais linda do mundo (A felicidade) (Donizette e Marcelo), música alheia que atravessou gerações. E, se de fato o que existe na vida são momentos felizes como prega essa bela canção, os de Odair José na Polydor estavam chegando ao fim. Álbum arranjado por José Roberto Bertrami com Luiz Cláudio Ramos, Odair (1975) - ao qual se seguiu o LP Histórias e pensamentos (1976), omitido na caixa - reforça a impressão de desgaste sinalizada por Lembranças. Mesmo assim, vale mencionar A viagem (Odair José) - alusão vaga aos efeitos da maconha - e Dê um chega na tristeza (Odair José e Maxine), ode à alegria, sentimento rarefeito em cancioneiro que tem seus méritos. As reedições destes quatro álbuns do artista na ótima caixa Quatro tons de Odair José são fundamentais porque dão a real dimensão da importância do cancioneiro do artista, dono de obra que não deve ser subestimada (por conta de algumas belas melodias e da habilidade do cantor em se comunicar com as massas de forma original e sincera), mas tampouco superestimada como se Odair José fosse o genial compositor que o tempo se encarregou de mostrar que ele - afinal - não conseguiu ser ao longo dos anos.
É por falar do povo e para o povo que o importante é tocar o coração de cada um. Somente a música é incapaz de nos enganar quando não discrimina público nem tema. O bom e velho Odair José, merece ser revisto e ampliado em todos os "Tons".
Que horror!!!
O relançamento do ano. Mas a conclusão do texto, contraditória com o que você tão explanou, eu reescreveria assim:
As reedições destes quatro álbuns do artista na ótima caixa Quatro tons de Odair José são fundamentais porque dão a real dimensão da importância do cancioneiro do artista, dono de obra que não deve ser superestimada, como se Odair José fosse o genial compositor que o tempo se encarregou de mostrar que ele - afinal - não conseguiu ser ao longo dos anos, nem tampouco subestimada por conta de algumas belas melodias e da habilidade do cantor em comunicar-se com as massas de forma original e sincera.
KL, grato por sua contribuição.
Você tem toda razão. Inverti a ordem da frase final para a conclusão ficar coerente com o tom positivo do texto. Abs, MauroF
Errata: *tão bem explanou
Mauro,
Obrigado por aceitar minha sugestão. Isso sem falar na quantidade (justa) de estrelas dadas por você aos álbuns. Há um outro dado relevante: embora OJ não seja um compositor sofisticado, ele soube captar o tempo e o espaço à sua volta, sem falar nos músicos top que o acompanham. Só isso já valeria o lançamento.
Abraço!
Ótima resenha, principalmente a parte final já citada pelo KL.
Como chorar não custa nada, vou deixar algumas sugestões pra 2014:
4 Tons - Claudette Soares/Wilson Simonal/Alcione/Jair Rodrigues/Jackson do Pandeiro/Os Cariocas/Tamba Trio/MPB-4/Boca Livre/Quarteto em Cy/Erlon Chaves/ Emilio Santiago;
3 Tons - Lennie Dale
André Queiroz,
Obrigado pela menção a mim, algumas sugestões suas para a série Tons já fazem parte da minha 'buzinação' na orelha dos produtores. Para reforçar as sugestões, reafirmo-as e acrescento mais algumas:
Claudette Soares: Claudette N.3/Meie Volta/Feitinha pro Sucesso
Wilson Simonal: Dimensão 75/Olhaí, Balandro.../Se Dependesse de Mim
5 Tons de Novela: Véu de Noiva/Pigmalião 70/Verão Vermelho/Assim na Terra como no Céu/A Próxima Atração/Irmãos Coragem
Erlon Chaves: qualquer um ou os três primeiros
Jair Rodrigues: os quatro primeiros solo
Tetê Espíndola: Tetê e O Lírio Selvagem/Piraretã/Gaiola
Walter Wanderley: Entre Nós/O Toque.../O Autêntico
Tamba Trio: todos os cinco
...
Abraço!
KL,
No caso do Simonal tem ainda o disco de 74 lançado no México
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