Mauro Ferreira no G1

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quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Índia cibernética, Rennó ritualiza repertório do CD I A R A em show teatral

Resenha de show
Título: I A R A
Artista: Iara Rennó (em foto de Rodrigo Amaral)
Local: Arena do Sesc Copacabana (Rio de Janeiro, RJ)
Data: 26 de setembro de 2013
Cotação: * * * *

Terra de origem indígena desbravada por colonizadores a partir do século XVII, o bairro carioca de Copacabana - célebre cartão postal do Rio de Janeiro (RJ) - foi cenário na noite de ontem, 26 de novembro de 2013, da apoteose modernista de espécie (rara) de índia cibernética que habitou a pele da cantora e compositora paulista Iara Rennó na estreia do ótimo show I A R A. Na arena circular do Sesc Copacabana, Rennó ritualizou o repertório do CD I A R A - recém-lançado pela gravadora paulista Joia Moderna, do DJ Zé Pedro - e deglutiu antropofagicamente influências e referências de samba, rock e outros elementos da geleia geral tropicalista. Ao redor de Rennó, hábil no toque performático de sua guitarra, o baterista e percussionista Leo Monteiro e o tecladista Ricardo Gomes (habitualmente no baixo da Banda Cê) prepararam os climas para a ambientação musical de show indie e teatral, calcado na cena armada com impacto pela diretora Ava Rocha. A belíssima luz de Alessandro Boschini preencheu a arena com efeitos que realçaram os climas do espetáculo. A video-instalação de Cristina Amazonas completou a cena, prejudicada de início por som deficiente que abafou as interpretações de Já era (Iara Rennó, 2013) - refeita no encerramento do bis - e do transamba Seu José (Iara Rennó, Thor Madsen e Anders Hentze, 2013), cuja narrativa do voo existencial da personagem-título se fragmentou nesse início de show feito na penumbra. O show se iluminou - em todos os sentidos - a partir do terceiro número, Outros tantos (Iara Rennó, 2013), e a partir daí jamais perdeu a pegada. Sob efeito macunaímico, a cyber índia tupi preparou o samba-canção Arroz sem feijão (Iara Rennó, 2013) à moda crua do grupo alemão Kraftwerk, experimentou texturas em Amor imenso (Iara Rennó e Thalma de Freitas, 2013) e em Estribilho (Iara Rennó, 2013), misturou inglês com português em The love (Iara Rennó, Tony Gordyn e Thalma de Freitas, 2013) e abriu a roda para receber Moreno Veloso e cair no samba com o produtor de I A R A, CD arranjado por Leo Monteiro e Ricardo Dias Gomes com a própria Rennó. O samba Nenhuma (Moreno Veloso, 2000) foi o aperitivo para o momento mais saboroso do banquete macunaímico, Um passo à frente (Moreno Veloso e Quito Ribeiro, 2005), degustado pela dupla com prato, faca e uma cadência tão envolvente que o samba de roda ganhou colorido inexistente na (boa) gravação feita pela cantora baiana Gal Costa no revigorante álbum Hoje (Trama, 2005). Antes de abrir a roda para a entrada de Moreno, Rennó já havia dado provas de sua habilidade como intérprete quando, munida de dois chocalhos, deu novo sentido a Outro (Caetano Veloso, 2006), música do disco , tempero jogado no caldeirão modernista do CD I A R A. A dança ritualística de Miligramas (Iara Rennó) - música que lembra que Rennó descende da tribo do vanguardista Itamar Assumpção (1949 - 2003) - enfatizou o caráter performático do show, cuja temperatura foi elevada com a exposição de Tara (Negro Leo, 2013), tema de alto teor sexual, gozado por Rennó em pas de deux com o quente Negro Leo, que permaneceu em cena em Arte bruta (Negro Leo e Ricardo Pitta, 2012). No fim, outro transamba - Roendo as unhas (1973), criativa apropriação do tema tenso de Paulinho da Viola - se harmonizou com o ritual afro da dançante Elegbara (Iara Rennó, 2013). No bis, Macunaíma (Iara Rennó, 2008) - música da ópera tupi registrada pela artista em 2008 em um primeiro disco solo inspirado na obra modernista do escritor paulista Mário de Andrade (1893 - 1945) - mostrou que, mesmo com todas as deglutições e influências absorvidas pelo CD I A R A, a tribo de Rennó continua sendo a própria Iara Rennó, índia indie nestes tempos cibernéticos. 

2 comentários:

Mauro Ferreira disse...

Terra de origem indígena desbravada por colonizadores a partir do século XVII, o bairro carioca de Copacabana - célebre cartão postal do Rio de Janeiro (RJ) - foi cenário na noite de ontem, 26 de novembro de 2013, da apoteose modernista de espécie (rara) de índia cibernética que habitou a pele da cantora e compositora paulista Iara Rennó na estreia nacional do show I A R A. Na arena circular do Sesc Copacabana, Rennó ritualizou o repertório do CD I A R A - recém-lançado pela gravadora Joia Moderna, do DJ Zé Pedro - e deglutiu antropofagicamente influências e referências de samba, rock e outros elementos da geleia geral tropicalista. Ao redor de Rennó, hábil no toque performático de sua guitarra, o baterista e percussionista Leo Monteiro e o tecladista Ricardo Gomes (habitualmente no baixo da Banda Cê) prepararam os climas para a ambientação musical de show indie e teatral, calcado na cena armada com impacto pela diretora Ava Rocha. A belíssima luz de Alessandro Boschini preencheu a arena com efeitos que realçaram os climas do espetáculo. O videoinstalação de Cristina Amazonas completou a cena, prejudicada de início por som deficiente que abafou as interpretações de Já era (Iara Rennó, 2013) - refeita no encerramento do bis - e do transamba Seu José (Iara Rennó, Thor Madsen e Anders Hentze, 2013), cuja narrativa do voo existencial da personagem-título se fragmentou nesse início de show feito na penumbra. O show se iluminou - em todos os sentidos - a partir do terceiro número, Outros tantos (Iara Rennó, 2013), e a partir daí jamais perdeu a pegada. Sob efeito macunaímico, a cyber índia tupi preparou o samba-canção Arroz sem feijão (Iara Rennó, 2013) à moda crua do grupo alemão Kraftwerk, experimentou texturas em Amor imenso (Iara Rennó e Thalma de Freitas, 2013) e em Estribilho (Iara Rennó, 2013), misturou inglês com português em The love (Iara Rennó, Tony Gordyn e Thalma de Freitas, 2013) e abriu a roda para receber Moreno Veloso e cair no samba com o produtor de I A R A, CD arranjado por Leo Monteiro e Ricardo Dias Gomes com a própria Rennó. O samba Nenhuma (Moreno Veloso, 2000) foi o aperitivo para o momento mais saboroso do banquete macunaímico, Um passo à frente (Moreno Veloso e Quito Ribeiro, 2005), degustado pela dupla com prato, faca e uma cadência tão envolvente que o samba de roda ganhou colorido inexistente na (boa) gravação feita pela cantora baiana Gal Costa no revigorante álbum Hoje (Trama, 2005). Antes de abrir a roda para a entrada de Moreno, Rennó já havia dado provas de sua habilidade como intérprete quando, munida de dois chocalhos, deu novo sentido a Outro (Caetano Veloso, 2006), música do disco Cê, tempero jogado no caldeirão modernista do CD I A R A. A dança ritualística de Miligramas (Iara Rennó) - música que lembra que Rennó descende da tribo do vanguardista Itamar Assumpção (1949 - 2003) - enfatizou o caráter performático do show, cuja temperatura foi elevada com a exposição de Tara (Negro Leo, 2003), tema de alto teor sexual, gozado por Rennó em pas de deux com o quente Negro Leo, que permaneceu em cena em Arte bruta (Negro Leo e Ricardo Pitta, 2012). No fim, outro transamba - Roendo as unhas (1973), criativa apropriação do tema tenso de Paulinho da Viola - se harmonizou com o ritual afro da dançante Elegbara (Iara Rennó, 2013). No bis, Macunaíma (Iara Rennó, 2008) - música da ópera tupi registrada pela artista em 2008 em um primeiro disco solo inspirado na obra modernista do escritor paulista Mário de Andrade (1893 - 1945) - mostrou que, mesmo com todas as deglutições e influências absorvidas pelo CD I A R A, a tribo de Rennó continua sendo a própria Iara Rennó, índia valente em tempos cibernéticos.

lurian disse...

Se o show bisar o bom resultado do disco deve estar fantástico!!! São músicas para soltar o pé numa viagem entre os 70's e os 201x's: Seu José, Outros tantos, Miligramas... Gostei muito desse projeto da Iara que tem cara de rock art dos anos 70, entre John Cale, Nico e Brian Eno. "Estribilho" comprova essa inspiração na forma recitativa e ao evocar as cantilenas ímpares de Nico, uma cantora tão singular que dificilmente alguém se aventura a reeimprimir seu estilo. Ai está um dos grandes trunfos da Iara e da produção do disco, associar essa aura underground dos anos 70 à geléia tropicalista que acontecia ao mesmo tempo no Brasil com um toque de futurismo contemporâneo. Pra mim um dos melhores discos do ano, e provavelmente o show esteja em igual quilate, verdadeira Jóia Moderna!