Resenha de CD
Título: Atento aos sinais
Artista: Ney Matogrosso
Gravadora: Som Livre
Cotação: * * * * 1/2
É difícil transpor para um disco gravado em estúdio, com exatidão, o clima de um show. O maior mérito do CD Atento aos sinais - o 43º título da discografia oficial de Ney Matogrosso - é refletir as estranhezas e o calor do show que está em turnê nacional desde fevereiro deste ano de 2013. Mais uma vez invertendo a ordem recorrente na indústria do disco, o cantor estreou um show, caiu na estrada, azeitou suas interpretações no palco e somente depois - em junho - gravou o álbum que a Som Livre vai pôr nas lojas no início de dezembro. Com 14 das 19 músicas do roteiro original, o CD Atento aos sinais espelha urgências urbanas, refletindo os climas do palco e também o calor das ruas. Afinal, por força das circunstâncias sociais, Incêndio (Pedro Luís, 1991) - música da Urge, extinta banda carioca de punk - se revela a trilha sonora ideal das turbulentas manifestações sociais que vem agitando o Brasil desde junho, geralmente culminando com incêndio nas ruas, como diz o refrão do tema da Urge. Fundamentais para elevar a temperatura de Incêndio, os metais em brasa de Aquiles Moraes (trompete e flugelhorn) e Everson Moraes (trombone) são uma das marcas do disco, deixando o CD em ponto de bala, sobretudo na parte inicial, quando Ney dá voz à Rua da passagem (Arnaldo Antunes e Lenine, 1999) - outra música que capta a efervescência urbana, mote do show - e ao samba Roendo as unhas (Paulinho da Viola, 1973), desconstruído entre tensões e ruídos expostos no renovador arranjo da faixa. A propósito: além de pilotar piano, teclados e sintetizadores, Sacha Amback assina os arranjos com a banda - integrada pelo baixista Dunga, pelo guitarrista Maurício Negão e pelos percussionistas Felipe Roseno e Marcos Suzano (também nas programações rítmicas) - e a direção musical do disco produzido por João Mário Linhares com o próprio Amback. É escorado nessa banda afiada que Ney - com seus olhos de farol que espreitam novidades, como mostra a foto de Marcelo Faustini reproduzida na expressiva capa do CD - dá voz a músicas de compositores emergentes, sem rede de proteção. O inspirado Dan Nakagawa assina a ótima Todo mundo o tempo todo (2011), reflexo da efervescência urbana cotidiana. Duas músicas do grupo carioca Tono sintonizam Ney com os tempos modernos, com doses de tecnologia e humor em Samba do blackberry (Rafael Rocha e Alberto Continentino, 2010) e de sensualidade em Não consigo (Rafael Rocha, 2010), tema ao qual foi adicionado um quinteto de cordas formado por quatro violinos e um violoncelo. Nessa músicas de teor erótico, o disco evidentemente não consegue reproduzir toda a quentura do show, pois, no palco, Ney se vale de gestos e olhares lascivos que reforçam as intenções, por exemplo, de Freguês da meia-noite (Criolo, 2011), faixa de aura intencionalmente kitsch, afinal gravada sem a cogitada participação do rapper paulista Criolo. Mesmo assim, o CD Atento aos sinais captura atenções pelas estranhezas e pelo alto grau de novidade de um intérprete que, aos 72 anos, continua sem medo de virar o disco. O arrojo do cantor no trânsito pela cena indie atenua o fato de a inédita Beijo de imã (Jerry Espíndola, Alzira E e Arruda) soar como música menor diante da grandeza do artista, capaz de jogar luz sobre jovem rapper alagoano, Vitor Pirralho, hábil ao montar o jogo de palavras da verborrágica Tupi fusão (Vitor Pirralho, Dinho Zampier, Pedro Ivo Euzébio e André Meira). Com groove que remete ao balanço da disco music no verso "Shake it up, baby", Pronomes (Beto Boing e Paulo Passos, 2006) - pop delicioso da banda paulista Zabomba - reitera o clima efervescente de disco/show cujo repertório abre espaço para a música sempre moderna do compositor paulista Itamar Assumpção (1949 - 2003) - representado no CD por Isso não vai ficar assim (1986) e por Noite torta (1993) - e para a obra do gaúcho Vitor Ramil. Introduzida pelo piano de Sacha Amback, A ilusão da casa (Vitor Ramil) é bela canção interpretada por Ney em tempo de delicadeza (mas com tons altos ao fim) bissexta em repertório banhado em ponto de fervura. A ausência de Astronauta lírico (Vitor Ramil, 2007) no CD é sentida, mas é um dos trunfos guardados por Ney para o DVD que vai ser editado em 2014 com o registro integral de show feito sem concessões. "Eu não hei de ceder ao vazio desses dias iguais", promete Ney em verso de Oração (2010), música do artista paulista Dani Black, da qual foi extraído o título Atento aos sinais. Promessa, aliás, cumprida por mais um disco antenado e visionário de um cantor que nunca deixou sua voz cair no vazio.
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ResponderExcluirO disco tá perfeito! Achei primoroso, como todos os trabalhos que o Ney faz. Adorei a versão dele para "Samba do Blackberry" e "Freqguês da Meia Noite". Achei que ele deu uma versão toda pessoal a estas canções.
ResponderExcluirO CD é muito bom, mas acho que deveria ter sido um "ao vivo" porque as músicas ficam mais pesadas e com mais pegada.
ResponderExcluirMauro, um adendo, Itamar faleceu em 2003, deve ter havido um erro de digitação, abraços ;)
ResponderExcluirGrato pelo toque do erro de digitação, Bruno. abs, MauroF
ResponderExcluirAchei o disco mediano. Tem ponto alto na escolha das temáticas que vão do consumo de drogas ao de objetos, violência, amor, respeito às leis. No entanto Ney já fez discos contemporâneos, turbinados com maior quilate como Olhos de farol e Inclassificáveis. Entendi a estética fervilhante do disco, mas acho que o excesso de sopros não me conquistou muito e concordo com o Fábio: fica legal no show, mas no disco de estúdio me cansa um pouco; mas apesar de não ter me seduzido inteiramente há faixas interessantes como Beijos de ímã, Samba do Backberry e Freguês da meia-noite. Apesar de gostar muito das composições do Vitor Ramil acho que Ney não dá a pegada que eu associo à "estética do frio" do compositor. Na minha leitura ele se saiu melhor interpretando os temas mais "quentes" do Ramil como "Mango" que ele andou cantando em alguns shows.
ResponderExcluirAgora sobre o disco.
ResponderExcluirFiquei bastante impactado com este projeto (show e disco). Achei muito estranho, me incomodou muito, fui do amor ao ódio e vice e versa em questão de minutos. E é por isso que acho ele incrível!
Um projeto que pode causar tanto incômodo, tantos sentimentos e tanta estranheza sem perder o tino nem o quilate é louvável.
Comentei num outro post que havia achado equivocada a escolha de alguns compositores. Me desdigo agora. Vivemos numa época em que os novos compositores usam e abusam das estranhezas e o Ney sacou isso muito bem. Turbinou esses arranjos e praticamente esbravejou todos os temas e canções.
Sem dúvidas, acho esse o melhor disco do ano por esse impacto tão forte!
Ótima resenha, Mauro.
Aliás, só uma coisa: acho uma pena que "Isso não vai Ficar Assim" está no álbum. Soou meio repetida, vide que os arranjos são bastante parecidos com os utilizados pela Zélia Duncan no disco "Tudo Esclarecido". Ela gravou essa música com a participação do Ney (para quem não sabe). Teria sido ótimo que "Fico Louco" tivesse entrado no lugar, mas paciência.
E que venha o DVD!
O disco é realmente lindo, envolvente e harmonioso. E ainda bem que não é um "ao vivo". Vi o show duas vezes e posso dizer que a releitura em estúdio capta o calor, a sensualidade e o clima misterioso do espetáculo, algo que eu julgava praticamente impossível de se conseguir. Os metais -furiosos em cena- estão na medida certa no cd, aliás, todos os arranjos são primorosos, criativos e cheios de sacadas interessantes, que se renovam a cada audição. Ney interpreta "A ilusão da casa" com um fogo e uma paixão impensáveis na gravação do autor, renovando o seu sentido. O clima metafísico de "Noite Torta" me faz enxergar a cena e sentir toda a angústia da situação qual uma tela de DeChirico, bonito demais. Ney adentra com charme e um certo cinismo no universo kitsch da canção de Criolo e na inacreditável e genial recriação de "Roendo as unhas". Num arranjo mais lento no cd, "Beijos de Imã" continuou prazerosa, cheia de um inusitado humor lascivo, presente tbem na divertida "Samba do Blackberry" . Na segunda temporada de "Atento.." em São Paulo, no HSBC, Ney não cantou "Oração" (pelo menos não na noite em que eu fui), mas pelo que eu me lembro da temporada de estreia, agora, na gravação o violão acentua o clima mouro, uma coisa meio João Bosco que a bela canção de Dani Black tem.
ResponderExcluirNo álbum todo há um fascinação meio absurda, meio insurgente pelo caos urbano, pela pressa do que ficou por ser dito, a urgência não vem só das ruas: vem sobretudo das relações pessoais, da impossibilidade de comunicação num mundo paradoxalmente tão conectado, a rua apenas é um reflexo. Parece que é disso que Ney tira sua paixão. Um retrato voraz (e crítico) de um artista que não teme expor sua visão do momento atual. Numa mistura de ousadia e reflexão, 2013 chega ao seu final trazendo, talvez, o lançamento mais inquietante do ano. Demorou mas valeu a pena...
"Os metais -furiosos em cena- estão na medida certa no cd". Discordo porque no CD esses metais ficaram pasteurizados e não tem como transpor a porrada que é o show para o CD, simplesmente impossível.
ResponderExcluirAchei o comentário da Fernanda muito exagerado. Não é uma crítica, mas muito pseudointelectual pra mim.
Sei que é bobagem comparar (os trabalhos de Ney são muito diferentes uns dos outros), mas nessa linha evolutiva iniciada por "Olhos de Farol" , considero esse "Atento aos Sinais" o melhor de todos, o mais maduro e contemporâneo. Quase sempre associado a um universo hedonístico, de ambigüidade sexual como forma de contestação e direito (político até) de manifestação, Ney surpreende ao colocar-se num contexto tão urbano e antenado, falando sem pudores de tanta coisa incômoda, um território complexo, onde seria fácil perder-se.
ResponderExcluirAs críticas que eu tenho lido são todas muito elogiosas, mas noto uma certa dificuldade dos críticos ao tentar definir o que sentem, acho que isto se deve mesmo à "estranheza", no bom sentido, que o disco provoca, não só pela temáticas das canções, mas pela sonoridade forte e provocadora.
Só li agora o comentário da Fernanda, e também estranhei a ausência de "Oração" no roteiro show no HSBC que Ney apresentou em agosto. Não sei se fui na mesma noite em que Fernanda foi, Ney fez 3 noites seguidas, fui na sexta, qdo reestreou, mas fiquei grilado, pois achei a canção belíssima. Difícil escolher uma favorita, mas essa é a que mais eu tenho ouvido do cd, fica no repeat direto...kkkkk
ResponderExcluir"A ilusão da casa" já possui gravação irretocável na voz de Rubi no seu belo disco Paisagem Humana. "Noite torta" ainda prefiro a gravação de Silvia Machette. O.k, Sinal aberto, sinal fechado, mas Ney permanece "atento aos sinais" em ótimo disco.
ResponderExcluirMauro, outro pequeno adendo. Oração já tinha sido gravada por Tatiana Parra.
ResponderExcluirNo mais, excelente crítica. Concordo em tudo.
Romani, olhe, na temporada em questão, eu fui no sábado, acho que era 3 de agosto. No roteiro original "Oração" aparecia entre "Noite Torta" e "A ilusão da Casa" e eu fiquei tão embevecida c/ a interpretação dessas duas, que não notei a ausência da primeira. Ao final do show foi o meu namorado que me deu um toque: "ele não cantou aquela que diz 'atento aos sinais"... Cheguei a cogitar a possibilidade de terem tirado o número por algum problema cenotécnico, sei lá, algo coisa assim. Mas se vc está confirmando, Ney deve ter tirado mesmo essa canção do roteiro,infelizmente, pelo menos nessa temporada aqui em Sampa.Um abraço!
ResponderExcluirPedro Bó gratíssimo pela informação. Realmente julgava que 'Oração' era inédita. Abs, MauroF
ResponderExcluirGênio sempre se renovando
ResponderExcluirDiscaço, não é apenas um registro do show, ele pulsa por sua originalidade. Gostei do início ao fim, até "Freguês da meia noite" que eu achava meio chatinha, acabei adorando no cd. E isso deve-se em grande parte pela bola dentro que foi convocar Sacha Amback para "orquestrar" esse projeto. O detalhismo do músico encontrou em Ney sua melhor inspiração.
ResponderExcluirApenas complementando o que Bruno Cavalcanti e Fernanda colocaram muito bem: não consegui estabelecer essa relação tão exaltada com o disco, até porque achei-o bastante elaborado e cerebral, diferente do show que é incendiário, um turbilhão, cheguei ao final dele perplexo e tonto de felicidade rss… Acho que o cd tem uma vibe diferente do show. Continua caloroso e vibrante, sim, mas um pouco mais contido e sutil, o que é muito salutar.
Olá, Mauro! Parabéns pelo blog! Achei o CD bem interessante... uma correção se faz necessária: a música "Todo Mundo o Tempo Todo" já foi gravada pelo Dan no CD "O oposto de dizer adeus". Abraço!
ResponderExcluirClaro, Edu Telles. Eu resenhei este (ótimo) CD do Dan, mas me esqueci da música. Grato pelo toque do erro. Abs, MauroF
ResponderExcluirComprei ontem e só posso dizer uma coisa : WOW ! Pra mim o melhor cd nacional de 2013, e olha que comprei muuuuita coisa esse ano.
ResponderExcluirDisco maravilhoso, não canso de ouvir. "A ilusão da casa" é sublime.
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