Título: Somos todos Amarildo
Artistas: Caetano Veloso e Marisa Monte (em foto de Rodrigo Amaral)
Local: Circo Voador (Rio de Janeiro, RJ)
Data: 20 de novembro de 2013
Cotação: * * * * 1/2
Já histórico em si, por promover o reencontro de Caetano Veloso com Marisa Monte no carioquíssimo palco do Circo Voador (os cantores já haviam se apresentado juntos no festival Heinken Concerts, em 1995), o show Somos todos Amarildo - feito no Dia da Consciência Negra, 20 de novembro de 2013 - jamais perdeu seu sentido político em cena. E, por isso, o inédito show se agigantou do primeiro ao último dos 21 números, além de ter seduzido o público por méritos exclusivamente musicais ao juntar uma cantora herdeira das liberdades estéticas da Tropicália com um dos dois organizadores do movimento de 1967. Aberto com projeção no telão de texto que lembrou ao público que as arbitrariedades oficiais geravam desaparecidos já nos tempos da ditadura, o show foi a segunda ação do projeto Somos todos Amarildo, que busca a conscientização popular para injustiças sociais como a tortura e a morte do pedreiro negro Amarildo de Souza por policiais da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da Favela da Rocinha, no Rio de Janeiro (RJ), em julho deste ano de 2013. Sem tirar o foco da ação conscientizadora do show, Caetano e Marisa celebraram a cidade partida em que vivem os cantores e em que viveu Amarildo, retrato mais recente dessa injustiça social. Não por acaso, Caetano abriu seu set com o samba Escapulário (Caetano Veloso a partir de poema de Oswald de Andrade, 1975) - apresentado pelo cantor baiano como "uma oração para o Rio de Janeiro escrita por um paulista no início do século XX" - enquanto Marisa entrou em cena ao som de Vide Gal, samba em que o baiano Carlinhos Brown se deixou levar pelas belezas naturais da cidade (relacionadas na letra que cita a Rocinha) e pela cadência bonita do samba carioca. O show Somos todos Amarildo teve costura realmente inédita, como anunciado, sem clonar números dos espetáculos Abraçaço e Verdade, uma ilusão, ainda mantidos em cena por Caetano e Marisa, respectivamente. Até porque a banda comum aos dois cantores - Pedro Baby (guitarra), Marcelo Costa (percussão), Pretinho da Serrinha (cavaquinho e percussão) e Sidão (baixo) - foi formada especialmente para o show. Com vitalidade incrível para seus 71 anos, o velho baiano Caetano lembrou de Branquinha (Caetano Veloso, 1989) - a canção do álbum Estrangeiro (1989) em que reverencia sua ex-mulher Paula Lavigne com versos que aludem amorosamente à luz carioca da empresária - e cantando, munido apenas de seu violão eletroacústico, mandou a tristeza embora ao som de Um índio (Caetano Veloso, 1976), Maria Bethânia (Caetano Veloso, 1971) - com direito aos vocais ruminados e à citação de Baião (Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, 1949), tal como no tristonho álbum londrino Caetano Veloso (1971) - e Odeio (Caetano Veloso, 2006), música que ganhou imprevisto sentido político quando o público acrescentou espontaneamente um "Fora, Cabral" ao refrão, expressando o descontentamento com a gestão do atual Governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral. A banda entrou somente a partir do samba Desde que o samba é samba (Caetano Veloso, 1993), tema que adquiriu sentido especial em show de ação conscientizadora por conta da letra que alude com poesia a um legado de injustiças sociais que fizeram com que muitas lágrimas claras tenham sido derramadas sobre peles escuras. Chamada ao palco por Caetano após o samba-reggae A luz de Tieta (Caetano Veloso, 1996), fecho apoteótico do set do cantor, Marisa Monte esbanjou charme, voz e elegância. Cantando em tons expansivos, a cantora arrebatou o público ao entoar a canção Gentileza (Marisa Monte, 2000) - música que também tem sentido político por expressar a insensibilidade oficial em relação ao escritos do artista urbano paulista conhecido como Profeta Gentileza (1917 - 1996) - e o samba A dança da solidão (Paulinho da Viola, 1972). Na sequência, Marisa fez a primeira grande surpresa do roteiro ao pegar seu violão para prestar homenagem ao recentemente falecido cantor e compositor norte-americano Lou Reed (1942 - 2013), "outro mestre nosso", na definição da cantora. O tributo veio na forma de bela interpretação de Pale blue eyes (Lou Reed, 1969), música lançada pelo grupo norte-americano The Velvet Underground em 1969 e revivida por Marisa no álbum Verde anil amarelo cor de rosa e carvão (1994). Veio, então, a lembrança da canção zen Vilarejo (2006), oportuna por ser parceria do trio tribalista com Pedro Baby, o guitarrista da banda. A presença de Pedro Baby no show tornou ainda mais emblemática a outra grande sacada de Marisa ao montar o repertório: A menina dança (Moraes Moreira e Galvão, 1972), o hit dos Novos Baianos associado à voz vivaz de Baby do Brasil, mãe de Pedro, e revivido no Circo com todo o charme do mundo por Marisa, que já gravara a música no DVD Barulhinho bom (1996) na companhia dos remanescentes do grupo. A menina dança incendiou o público, elevando ainda mais temperatura que já ficara alta quando a cantora deu voz à canção pop Eu sei (Na mira) (Marisa Monte, 1991) e ao sucesso tribalista Carnavália (Marisa Monte, Arnaldo Antunes e Carlinhos Brown, 2002) - outra música de presença significativa em show que fez história ao carnavalizar de forma consciente o sentimento de indignação contra as injustiças cometidas contra os Amarildos do Brasil. Após o set de Marisa, aconteceu o momento mais esperado do show: o encontro efetivo dos dois cantores em cena. E os quatro duetos feitos antes do bis resultaram azeitados e sedutores. Enfim, belos. Em Cajuína (Caetano Veloso, 1979), Marisa fez contracanto que evocou sua formação lírica sem sair do tom da música nordestina. Lua, lua, lua, lua (Caetano Veloso, 1975) foi momento terno de poesia e canção em tempo de delicadeza. Marisa cantou os primeiros versos, Caetano entrou depois - enquanto a cantora manejava percussão minimalista - e, ao fim, eles uniram vozes em total harmonia, bisada nos uníssonos da Oração ao tempo (Caetano Veloso, 1979). O já esperado samba-rock De noite na cama (Caetano Veloso, 1971) - gravado por Marisa em seu álbum Mais (1991) 20 anos após o tremendo registro original de Erasmo Carlos - fechou o show. No bis, após discurso em que Marisa enfatizou o caráter sócio-político das ações do projeto Somos todos Amarildo, o bom samba Canta canta, minha gente - retumbante sucesso nacional de seu compositor Martinho da Vila em 1974 - reiterou a intenção de mandar a tristeza embora com o canto. Contudo, o número foi o único que pareceu mal ensaiado. A voz ímpar de Marisa já não ostentava o viço perceptível em todo o show. Caetano, sem saber a letra, cantou somente o refrão. Mas isso foi detalhe pequeno - insignificante - em histórico show de grande dimensão política e musical.
13 comentários:
Já histórico em si, pelo ineditismo do encontro de Caetano Veloso com Marisa Monte no carioquíssimo palco do Circo Voador, o show Somos todos Amarildo - feito no Dia da Consciência Negra, 20 de novembro de 2013 - jamais perdeu seu sentido político em cena. E, por isso, o inédito show se agigantou do primeiro ao último dos 21 números, além de ter seduzido o público por méritos puramente musicais ao juntar uma cantora herdeira das liberdades estéticas da Tropicália com um dos organizadores do movimento de 1967. Aberto com projeção de texto que lembrou ao público que as arbitrariedades oficiais geravam desaparecidos já nos tempos da ditadura, o show foi a segunda ação do projeto Somos todos Amarildo, que busca a conscientização popular para injustiças sociais como a tortura e a morte do pedreiro negro Amarildo de Souza por policiais da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da Favela da Rocinha, no Rio de Janeiro (RJ), em julho deste ano de 2013. Sem tirar o foco da ação conscientizadora do show, Caetano e Marisa celebraram a cidade partida em que vivem os cantores e em que viveu Amarildo, retrato mais recente dessa injustiça social. Não por acaso, Caetano abriu seu set com o samba Escapulário (Caetano Veloso a partir de poema de Oswald de Andrade, 1975) - apresentado pelo cantor baiano como "uma oração para o Rio de Janeiro escrita por um paulista no início do século XX" - enquanto Marisa entrou em cena ao som de Vide Gal, samba em que o baiano Carlinhos Brown se deixou levar pelas belezas naturais da cidade (relacionadas na letra que cita a Rocinha) e pela cadência bonita do samba carioca. O show Somos todos Amarildo teve costura realmente inédita, como anunciado, sem clonar números dos espetáculos Abraçaço e Verdade, uma ilusão, ainda mantidos em cena por Caetano e Marisa, respectivamente. Até porque a banda comum aos dois cantores - Pedro Baby (guitarra), Marcelo Costa (percussão), Pretinho da Serrinha (cavaquinho e percussão) e Sidão (baixo) - foi formada especialmente para o show. Com vitalidade incrível para seus 71 anos, o velho baiano Caetano lembrou de Branquinha (Caetano Veloso, 1989) - a canção do álbum Estrangeiro (1989) em que reverencia sua ex-mulher Paula Lavigne com versos que aludem amorosamente à luz carioca da empresária - e cantando, munido apenas de seu violão eletroacústico, mandou a tristeza embora ao som de Um índio (Caetano Veloso, 1976), Maria Bethânia (Caetano Veloso, 1971) - com direito aos vocais ruminados e à citação de Baião (Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, 1949), tal como no tristonho álbum londrino Caetano Veloso (1971) - e Odeio (Caetano Veloso, 2006), música que ganhou imprevisto sentido político quando o público acrescentou espontaneamente um "Fora, Cabral" ao refrão, expressando o descontentamento com a gestão do atual Governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral. A banda entrou somente a partir do samba Desde que o samba é samba (Caetano Veloso, 1982), tema que adquiriu sentido especial em show de ação conscientizadora por conta da letra que alude com poesia a um legado de injustiças sociais que fizeram com que muitas lágrimas claras tenham sido derramadas sobre peles escuras.
Chamada ao palco por Caetano após o samba-reggae A luz de Tieta (Caetano Veloso, 1996), fecho apoteótico do set do cantor, Marisa Monte esbanjou charme, voz e elegância. Cantando em tons expansivos, a cantora arrebatou o público ao entoar a canção Gentileza (Marisa Monte, 2000) - música que também tem sentido político por expressar a insensibilidade oficial em relação ao escritos do artista urbano paulista conhecido como Profeta Gentileza (1917 - 1996) - e o samba A dança da solidão (Paulinho da Viola, 1972). Na sequência, Marisa fez a primeira grande surpresa do roteiro ao pegar seu violão para prestar homenagem ao recentemente falecido cantor e compositor norte-americano Lou Reed (1942 - 2013), "outro mestre nosso", na definição da cantora. O tributo veio na forma de bela interpretação de Pale blue eyes (Lou Reed, 1969), música lançada pelo grupo norte-americano The Velvet Underground em 1969 e revivida por Marisa no álbum Verde anil amarelo cor de rosa e carvão (1994). Veio, então, a lembrança da canção zen Vilarejo (2006), oportuna por ser parceria do trio tribalista com Pedro Baby, o guitarrista da banda. A presença de Pedro Baby no show tornou ainda mais emblemática a outra grande sacada de Marisa ao montar o repertório: A menina dança (Moraes Moreira e Galvão, 1972), o hit dos Novos Baianos associado à voz vivaz de Baby do Brasil, mãe de Pedro, e revivido no Circo com todo o charme do mundo por Marisa, que já gravara a música no DVD Barulhinho bom (1996) na companhia dos remanescentes do grupo. A menina dança incendiou o público, elevando ainda mais temperatura que já ficara alta quando a cantora deu voz à canção pop Eu sei (Na mira) (Marisa Monte, 2001) e ao sucesso tribalista Carnavália (Marisa Monte, Arnaldo Antunes e Carlinhos Brown, 2002) - outra música de presença significativa em show que fez história ao carnavalizar de forma consciente o sentimento de indignação contra as injustiças cometidas contra os Amarildos do Brasil. Após o set de Marisa, aconteceu o momento mais esperado do show: o encontro efetivo dos dois cantores em cena. E os quatro duetos feitos antes do bis resultaram azeitados e sedutores. Enfim, belos. Em Cajuína (Caetano Veloso, 1979), Marisa fez contracanto que evocou sua formação lírica sem sair do tom da música nordestina. Lua, lua, lua, lua (Caetano Veloso, 1975) foi momento terno de poesia e canção em tempo de delicadeza. Marisa cantou os primeiros versos, Caetano entrou depois - enquanto a cantora manejava percussão minimalista - e, ao fim, eles uniram vozes em total harmonia, bisada nos uníssonos da Oração ao tempo (Caetano Veloso, 1979). O já esperado samba-rock De noite na cama (Caetano Veloso, 1971) - gravado por Marisa em seu álbum Mais (1991) 20 anos após o tremendo registro original de Erasmo Carlos - fechou o show. No bis, após discurso em que Marisa enfatizou o caráter sócio-político das ações do projeto Somos todos Amarildo, o bom samba Canta canta, minha gente - retumbante sucesso nacional de seu compositor Martinho da Vila em 1974 - reiterou a intenção de mandar a tristeza embora com o canto. Contudo, o número foi o único que pareceu mal ensaiado. A voz ímpar de Marisa já não ostentava o viço perceptível em todo o show. Caetano, sem saber a letra, cantou somente o refrão. Mas isso foi detalhe pequeno - insignificante - em histórico show de grande dimensão política e musical.
Esse show deve ter sido bom mesmo.
Muito bom ver Marisa Monte cantando novamente um repertório a sua altura e " em tons expansivos"
- Excetuando Vilarejo(boboca como seu atual repertório) mas de tema condizente com o show -
Quem sabe ela não se anima de novo.
PS: Nando Reis certa vez disse que o mito criado em torno do Acabou Chorare escondia a obra prima que é o Novos Baianos F.C.
Concordando com o Nando, e tendo quase certeza que ele concordaria comigo, eu digo que o mesmo acontece em relação ao Transa com o Caetano 71.
Ahh, boa iniciativa dos dois.
Mais importante até que os dividendos práticos do show está a iniciativa de fazê-lo, a reverberação de boas atitudes.
Só se muda as coisas mudando as mentes.
Só fiquei mais curioso pra ouvir um áudio que foi gravado e está pra ser passado pra mim.
Mauro, a música "Eu sei (Na mira)" é de 91, se não me engano. Do disco Mais.
Não vi o show por questões geográficas e acho uma pena que apenas o Rio receba esse encontro, apesar de o tom politizado estar calcado em acontecimentos cariocas que repercutiram no Brasil e no mundo.
Entretanto, pelo roteiro, me decepcionei com a interação curta dos dois. Imaginei que haveriam mais número em dupla e esperava ver Caetano interpretando Marisa - como fez nos anos 90 ao cantar "Maria de Verdade" ao lado do autor Carlinhos Brown e da interprete Marisa.
Mas enfim, não assisti, não opino, mas que importância tem esse show no momento em que nos encontramos! Estes dois artistas merecem respeito pela sua obra e pela sua coragem de, nesta altura da carreira, ainda se permitirem a vôos altos como este. Fico feliz.
Abraços, Mauro.
Augusto Flávio (Petrolina-Pe/Juazeiro-Ba)
Mauro,
"Desde que o samba é samba" é de 1993 (Disco Tropicália 2)e não 1982.
"Eu sei (Na mira)" é de 1991 (Disco Mais)e não 2001.
Abs,
Espetacular o show destes dois!!!
Pedro e Augusto, grato pelo toque do erro de digitação, já corrigido. Claro que 'Eu sei' é de 1991, como está no roteiro. Cabeça a mil... Abs, MauroF
Bruno, grato por me lembrar deste encontro anterior de Marisa com Caetano. Abs, MauroFerreira
Augusto Flávio (Petrolina-Pe/Juazeiro-Ba)
"Desde que o samba é samba" é de 1993 (Disco Tropicália 2)e não 1982.
Abs.
Claro, Augusto, grato por mais esse toque de erro de digitação. Como já disse em post anterior, a cabeça está cansada. Muitos discos e shows nessa época do ano. Abs, MauroF
Que maravilha, Mauro, a lembrança do "The Velvet Underground", de 69. Grande album!! Aliás, vale a pena ouvirem a versão de "Pale Blue Eyes" desse disco. Linda...
E espero que Marisa saia de vez da toca.
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