Resenha de CD
Título: Gilbertos samba
Artista: Gilberto Gil
Gravadora: Sony Music
Cotação: * * * * *
"Aparece a cada cem anos um mestre da canção no país / ... / E a cada vinte e cinco um aprendiz", contabiliza Gilberto Gil em versos de Gilbertos, samba inédito de sua autoria, composto para arrematar Gilbertos samba, álbum em que o cantor, compositor e músico baiano celebra o legado de seu conterrâneo João Gilberto Prado Pereira de Oliveira, baiano genial que deu choque de ordem na música brasileira em 1958 ao sintetizar a cadência do samba na batida diferente de seu violão, em revolução estética rotulada como Bossa Nova. Já a caminho dos 83 anos, João é o mestre que bebeu nas águas de outros mestres que o antecederam, como o compositor (também) baiano Dorival Caymmi (1914 - 2008), não por acaso citado por Gil em verso de Gilbertos, samba gravado com o toque do violão de Dori Caymmi neste disco primoroso que tem lançamento agendado para a próxima terça-feira, 1º de abril de 2014. Gilbertos samba mostra que, de embevecido aprendiz de João, Gil se transformou ele próprio em mestre. Produzido por Bem Gil e Moreno Veloso, sob a direção musical do próprio Gilberto Gil, o CD Gilbertos samba sustenta a leveza genial de João - sem cair na tentação vã de reproduzir o som e o canto irreproduzíveis do artista que reverencia - e, de certa forma, sintetiza em suas 12 faixas os caminhos trilhados pela música brasileira ao longo de quase cem anos. Estão em perfeita harmonia no disco alguns sambas da fase pré-Bossa Nova, a própria Bossa Nova (representada por alguns standards do gênero e pela própria presença simbólica de seu papa João), a voz e o violão de Gil - símbolos emblemáticos da MPB cristalizada na era pós-bossa dos festivais dos anos 1960 - e músicos que, a partir dos anos 2000, fizeram uma revolução silenciosa na música brasileira, renovando timbres e sonoridades. A integração desses elementos - ajustados num todo harmônico que honra o legado de João - faz com que Gilbertos samba seja sedutora "experiência de densa textura histórica", como conceitua Caetano Veloso no preciso texto reproduzido no encarte do disco, que vai ser lançado em CD e no formato de vinil. Somente a inserção em Desafinado (Antonio Carlos Jobim e Newton Mendonça, 1959) - hino da bossa depurado por João em seu álbum Chega de saudade (Odeon, 1959) - dos efeitos e ruídos da guitarra de Pedro Sá já garante ao disco um papel histórico na música brasileira. Porque nada soa fora da ordem ou de lugar em Gilbertos samba. Ao contrário: tudo soa rigorosamente em seu devido lugar - como em qualquer gravação de João, aliás. Já na primeira faixa do disco, Aos pés da cruz (Marino Pinto e Zé da Zilda, 1942), samba purificado por João no seu histórico primeiro álbum de 1959, salta aos ouvidos a coesão do arranjo da gravação. A voz de Gil e o toque de seu violão - de uma bossa toda própria - se harmonizam com a suave percussão eletrônica de Domenico Lancellotti. Nada sobra. Nada falta. Na sequência, Eu sambo mesmo (Janet de Almeida, 1946) - música que soou como carta de princípios na abertura do álbum João (PolyGram, 1991) e que uma geração mais nova conheceu na voz de Roberta Sá - reitera o acerto de Gil. O toque sutil da flauta de Danilo Caymmi sublinha a sensação de que músicos e cantor trabalharam unicamente a serviço da canção, como ensinou o mestre João. Mesmo quando os arranjos são encorpados com sopros e cordas - como em Você e eu (Carlos Lyra e Vinicius de Moraes, 1961), samba lançado no álbum João Gilberto (Odeon, 1961) - a leveza é senhora neste disco em que Gil dá voz a Desde que o samba é samba (Caetano Veloso, 1993), tema que abriu o álbum João, voz e violão (Universal Music, 2000). Dentro dessa atmosfera harmoniosa, O pato (Jaime Silva e Neusa Teixeira, 1960) volta a fazer qüen qüen com propriedade. Desde o fim dos anos 1940, este samba fazia parte do repertório dos Garotos da Lua, grupo carioca do qual João foi crooner, mas ficou definitivamente associado a João por conta da gravação do LP O amor, o sorriso e a flor (Odeon, 1960). Deste segundo álbum de João, Gil pescou também Doralice (1945), samba feito por Dorival Caymmi em parceria com o compositor carioca Antonio Almeida (1911 - 1985) e lançado em agosto de 1945 pelo conjunto Anjos do Inferno, do qual João é devoto. Na abordagem de Gilbertos samba, Doralice ganha também o toque do acordeom de Mestrinho e a pulsação do violino de Nicolas Krassik sem que um instrumento queira ser mais importante do que o outro. Completando o naipe de faixas que envolvem Caymmi e seu legado perpetuado pelos filhos Danilo e Dori, Milagre (Dorival Caymmi, 1977) é cortado pela faca e pelo prato de Moreno Veloso em evocação do samba da terra natal que o baiano Caymmi mitificou em sua obra. Fazer Milagre (Dorival Caymmi, 1977) em Gilbertos samba tem sentido pelo fato de o tema remeter à união de João com Gil e com Caetano Veloso no disco Brasil (Warner Music, 1981). É como se Gil estivesse simultaneamente trilhando os caminhos que deram na bossa de João e os caminhos que, a partir de João, deram em Gil. Ambientado em clima de samba-choro, o tema instrumental Um abraço no João (Gilberto Gil, 1997) é elo com Um abraço no Bonfá, música que João Gilberto compôs e que gravou em 1960 para saudar o compositor e violonista carioca Luiz Bonfá (1922 - 2001). A busca pelo essencial da canção faz com que o samba Tim tim por tim tim (Haroldo Barbosa e Geraldo Jacques, 1951) - gravado por João no seu melhor álbum pós-Bossa Nova, Amoroso (Warner Music, 1977) - permaneça em sintonia com o universo do samba mesmo quando se ouve o triângulo percutido por Rodrigo Amarante, em eco do legado do mestre Luiz Gonzaga (1912-1989). Com a voz em registros normalmente graves, Gil parece amarrar todas as pontas de sua estrela quando volta ao seu samba Eu vim da Bahia, lançado por Gal Costa em 1965 e revivido por João Gilberto em álbum de 1973. Toda a dimensão histórica de Gilbertos samba - grande álbum do aprendiz que virou mestre - fica explícita com a nova abordagem de Eu vim da Bahia, feito quando Gil já absorvia as lições de João. O reencontro dos Gilbertos deu samba.
"Aparece a cada cem anos um mestre da canção no país / ... / E a cada vinte e cinco um aprendiz", contabiliza Gilberto Gil em versos de Gilbertos, samba inédito de sua autoria, composto para arrematar Gilbertos samba, álbum em que o cantor, compositor e músico baiano celebra o legado de seu conterrâneo João Gilberto Prado Pereira de Oliveira, baiano genial que deu choque de ordem na música brasileira em 1958 ao sintetizar a cadência do samba na batida diferente de seu violão, em revolução estética rotulada como Bossa Nova. Já a caminho dos 83 anos, João é o mestre que bebeu nas águas de outros mestres que o antecederam, como o compositor (também) baiano Dorival Caymmi (1914 - 2008), não por acaso citado por Gil em verso de Gilbertos, samba gravado com o toque do violão de Dori Caymmi neste disco primoroso que tem lançamento agendado para a próxima terça-feira, 1º de abril de 2014. Gilbertos samba mostra que, de embevecido aprendiz de João, Gil se transformou ele próprio em mestre. Produzido por Bem Gil e Moreno Veloso, sob a direção musical do próprio Gilberto Gil, o CD Gilbertos samba sustenta a leveza genial de João - sem cair na tentação vã de reproduzir o som e o canto irreproduzíveis do artista que reverencia - e, de certa forma, sintetiza em suas 12 faixas os caminhos trilhados pela música brasileira ao longo de quase cem anos. Estão em perfeita harmonia no disco alguns sambas da fase pré-Bossa Nova, a própria Bossa Nova (representada por alguns standards do gênero e pela própria presença simbólica de seu papa João), a voz e o violão de Gil - símbolos emblemáticos da MPB cristalizada na era pós-bossa dos festivais dos anos 1960 - e músicos que, a partir dos anos 2000, fizeram uma revolução silenciosa na música brasileira, renovando timbres e sonoridades. A integração desses elementos - ajustados num todo harmônico que honra o legado de João - faz com que Gilbertos samba seja sedutora "experiência de densa textura histórica", como conceitua Caetano Veloso no preciso texto reproduzido no encarte do disco, que vai ser lançado em CD e no formato de vinil. Somente a inserção em Desafinado (Antonio Carlos Jobim e Newton Mendonça, 1959) - hino da bossa depurado por João em seu álbum Chega de saudade (Odeon, 1959) - dos efeitos e ruídos da guitarra de Pedro Sá já garante ao disco um papel histórico na música brasileira. Porque nada soa fora da ordem ou de lugar em Gilbertos samba. Ao contrário: tudo soa rigorosamente em seu devido lugar - como em qualquer gravação de João, aliás. Já na primeira faixa do disco, Aos pés da cruz (Marino Pinto e Zé da Zilda, 1942), samba purificado por João no seu histórico primeiro álbum de 1959, salta aos ouvidos a coesão do arranjo da gravação. A voz de Gil e o toque de seu violão - de uma bossa toda própria - se harmonizam com a suave percussão eletrônica de Domenico Lancellotti. Nada sobra. Nada falta. Na sequência, Eu sambo mesmo (Janet de Almeida, 1946) - música que soou como carta de princípios na abertura do álbum João (PolyGram, 1991) e que uma geração mais nova conheceu na voz de Roberta Sá - reitera o acerto de Gil. O toque sutil da flauta de Danilo Caymmi sublinha a sensação de que músicos e cantor trabalharam unicamente a serviço da canção, como ensinou o mestre João. Mesmo quando os arranjos são encorpados com sopros e cordas - como em Você e eu (Carlos Lyra e Vinicius de Moraes, 1961), samba lançado no álbum João Gilberto (Odeon, 1961) - a leveza é senhora neste disco em que Gil dá voz a Desde que o samba é samba (Caetano Veloso, 1992), tema que abriu o álbum João, voz e violão (Universal Music, 2000).
ResponderExcluirDentro dessa atmosfera harmoniosa, O pato (Jaime Silva e Neusa Teixeira, 1960) volta a fazer qüen qüen com propriedade. Desde o fim dos anos 1940, este samba fazia parte do repertório dos Garotos da Lua, grupo carioca do qual João foi crooner, mas ficou definitivamente associado a João por conta da gravação do LP O amor, o sorriso e a flor (Odeon, 1960). Deste segundo álbum de João, Gil pescou também Doralice (1945), samba feito por Dorival Caymmi em parceria com o compositor carioca Antonio Almeida (1911 - 1985) e lançado em agosto de 1945 pelo conjunto Anjos do Inferno, do qual João é devoto. Na abordagem de Gilbertos samba, Doralice ganha também o toque do acordeom de Mestrinho e a pulsação do violino de Nicolas Krassik sem que um instrumento queira ser mais importante do que o outro. Completando o naipe de faixas que envolvem Caymmi e seu legado perpetuado pelos filhos Danilo e Dori, Milagre (Dorival Caymmi, 1977) é cortado pela faca e pelo prato de Moreno Veloso em evocação do samba da terra natal que o baiano Caymmi mitificou em sua obra. Fazer Milagre (Dorival Caymmi, 1977) em Gilbertos samba tem sentido pelo fato de o tema remeter à união de João com Gil e com Caetano Veloso no disco Brasil (Warner Music, 1981). É como se Gil estivesse simultaneamente trilhando os caminhos que deram na bossa de João e os caminhos que, a partir de João, deram em Gil. Ambientado em clima de samba-choro, o tema instrumental Um abraço no João (Gilberto Gil, 1997) é elo com Um abraço no Bonfá, música que João Gilberto compôs e que gravou em 1960 para saudar o compositor e violonista carioca Luiz Bonfá (1922 - 2001). A busca pelo essencial da canção faz com que o samba Tim tim por tim tim (Haroldo Barbosa e Geraldo Jacques, 1951) - gravado por João no seu melhor álbum pós-Bossa Nova, Amoroso (Warner Music, 1977) - permaneça em sintonia com o universo do samba mesmo quando se ouve o triângulo percutido por Rodrigo Amarante, em eco do legado do mestre Luiz Gonzaga (1912-1989). Com a voz em registros normalmente graves, Gil parece amarrar todas as pontas de sua estrela quando volta ao seu samba Eu vim da Bahia, lançado por Gal Costa em 1965 e revivido por João Gilberto em álbum de 1973. Toda a dimensão histórica de Gilbertos samba - grande álbum do aprendiz que virou mestre - fica explícita com a nova abordagem de Eu vim da Bahia, feito quando Gil já absorvia as lições de João. O encontro dos Gilbertos deu samba.
ResponderExcluirTexto lindo, Mauro. Parabéns!
ResponderExcluirTexto lindo, Mauro. Parabéns!
ResponderExcluirTexto perfeito! Vamos aguardar o CD. Grande expectativa.
ResponderExcluir"(...)De embevecido aprendiz de João, Gil se transformou ele próprio em mestre."
ResponderExcluirÉ só. E é tudo. A resenha podia ter ficado aí que já resumia as coisas.
Felipe dos Santos Souza
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirb
ResponderExcluirO do Gil ainda não ouvi, mas pela faixa "Você E Eu" achei fantástica a interpretação minimalista dele. Ainda vou comprar o CD, apesar de achar "Gilbertos Samba" um nome muito feio, deveria ter ficado mesmo "João Gilberto Gil", mais impactante e bonito. Sempre sonhei desde criança num disco do Gil dedicado a João, mas com o nome de "João Gilberto Gil", mas infelizmente não deu. Nem tudo é perfeito e como a gente quer... Paciência...
ResponderExcluirótima RESENHA, pedi de presente de aniversário o Cd, agora é aguardar e vida longa aos Gilbertos!!!!
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