Título: Otto canta Martinho
Artista: Otto (em foto de Rodrigo Goffredo)
Local: Circo Voador (Rio de Janeiro, RJ)
Data: 24 de maio de 2014
Cotação: * * * *
Há pontos de contato entre a obra de Otto - cantor e compositor pernambucano projetado na cena do Mangue Beat nos anos 1990 como percussionista do grupo Mundo Livre S/A - e o repertório inspirado gravado há 40 anos pelo cantor e compositor fluminense Martinho da Vila em um de seus melhores álbuns, Canta canta, minha gente (RCA, 1974), um dos títulos recordistas da discografia deste sambista que arejou o partido alto e o samba-enredo na segunda metade dos anos 1960. O mais óbvio desses links que conectam Otto ao Martinho de 1974 talvez seja a rítmica afro-brasileira dos pontos de macumba que encerram o álbum, adaptados pelo próprio Martinho para a faixa intitulada Festa de umbanda. Afinal, o repertório da discografia solo de Otto embute devoções aos orixás. O que fez com que o santo baixasse naturalmente forte no palco do Circo Voador quando o cantor reanimou a Festa de umbanda quase ao fim da estreia carioca do show em que Otto dá voz às músicas de Canta canta, minha gente, álbum de grande impacto na sua infância e formação musical, como o artista reiterou diversas e repetidas vezes para o público que assistiu à apresentação iniciada já na primeira hora deste sábado, 24 de maio de 2014. "Se não fosse esse cara em 1974, eu não seria cantor. Eu não seria eu", sentenciou Otto, fazendo a sua filosofia do samba. A louvação a Martinho soou verdadeira, ouvida na voz de um cantor cujo primeiro álbum solo, lançado em 1998, se chamou Samba pra burro. E o fato é que, desde o primeiro número do show, Canta canta, minha gente (Martinho da Vila, 1974), Otto baixou forte no terreiro de Martinho, sustentado pelas percussões de Malê e de Marcos Axé, presenças igualmente fortes na banda arregimentada pelo baterista Pupillo Oliveira (diretor musical do show Otto canta Martinho) - sobretudo em números como o samba-enredo Tribo dos Carajás (Martinho da Vila, 1974). Regis Damasceno (baixo e violão), Rodrigo Campos (cavaco e violão) e Thiago França (sax e flauta) completam a banda. Complementada eventualmente por Otto, em números como o ruralista Calango vascaíno (Martinho da Vila, 1974), a percussão garantiu batuque firme na azeitada cozinha. Contudo, os violões e as flautas foram fundamentais para criar o clima seresteiro que ambienta Malandrinha, modinha de 1926 da lavra do compositor fluminense Freire Júnior (1881 - 1956). Sucesso na voz do cantor carioca Francisco Alves (1898 - 1952), que lançou Malandrinha em gravação de 1927, a canção - revivida por Martinho em Canta canta, minha gente - teve seu tom lamentoso adequadamente realçado por Otto. Ao reabrir a cortina do passado seminal da música brasileira neste álbum de 1974, o sambista também foi na fonte e gravou Patrão, prenda seu gado, parceria dos pioneiros Donga (1890 - 1974), João da Baiana (1887 - 1974) e Pixinguinha (1897 - 1973) - santíssima trindade do samba que saiu de cena há 40 anos, quando Martinho preparava o álbum que o alçaria a um elevado patamar de vendas na indústria fonográfica brasileira da época. Patrão, prenda seu gado é um samba com toques de maxixe que Martinho levou para o universo do Brasil rural, em sintonia com o título. Performático, Otto dança e rebola ao longo desse número que reitera sua intimidade com o repertório do álbum de Martinho. Não é fácil cantar Martinho da Vila, aliás. Seus sambas têm cadência toda própria e jamais obedecem a uma fórmula ou estrutura pré-definida. Mas Otto, cheio de energia na voz e na mente, dá conta de todos esses sambas, entrando no emaranhando sensual de Disritmia (Martinho da Vila, 1974) - uma das obras-primas do disco e de todo cancioneiro autoral de Martinho - e na batida do samba de terreiro Dente por dente (Martinho da Vila, 1974). Exemplo da capacidade do compositor de versar sobre o próprio universo do samba sem cair na exaltação simplória do gênero, Renascer das cinzas (Martinho da Vila, 1974) abriu alas no show por conta da vibração do elétrico Otto. Samba engajado que encoraja negros a lutar por uma vida de igualdade racial, Nego, vem cantar (Martinho da Vila, 1974) teve a força de seu refrão ressaltada por Otto. Que bem poderia ter contido seu ímpeto de cantar trecho de sucesso do cantor mineiro Wando (1945 - 2012) - Fogo e paixão (Wando e Rose, 1985) - para não tirar Martinho do foco do show (a lembrança posterior de Emoriô, parceria de João Donato e Gilberto Gil lançada em 1975, também soou desnecessária, embora menos deslocada pela evocação do universo da mãe África). Reapresentada nos anos 2000 pela cantora paulista Céu, saudada por Otto por estar presente na plateia, Visgo de jaca (Rildo Hora e Sérgio Cabral, 1974) teve reiterada sua modernidade enquanto Viajando (Martinho da Vila, 1984) provou que o samba de Martinho da Vila desconhece fronteiras harmônicas em sua rota particular. A ponto de ser deglutido por Otto, 40 anos após a edição do LP Canta canta, minha gente, em show pulsante que faz a gente cantar enquanto vê Otto baixar com força no terreiro multifacetado de Martinho da Vila.
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Há pontos de contato entre a obra de Otto - cantor e compositor pernambucano projetado na cena do Mangue Beat nos anos 1990 como percussionista do grupo Mundo Livre S/A - e o repertório inspirado gravado há 40 anos pelo cantor e compositor fluminense Martinho da Vila em um de seus melhores álbuns, Canta canta, minha gente (RCA, 1974), um dos títulos recordistas da discografia deste sambista que arejou o partido alto e o samba-enredo na segunda metade dos anos 1960. O mais óbvio desses links que conectam Otto ao Martinho de 1974 talvez seja a rítmica afro-brasileira dos pontos de macumba que encerram o álbum, adaptados pelo próprio Martinho para a faixa intitulada Festa de umbanda. Afinal, o repertório da discografia solo de Otto embute devoções aos orixás. O que fez com que o santo baixasse naturalmente forte no palco do Circo Voador quando o cantor reanimou a Festa de umbanda quase ao fim da estreia carioca do show em que Otto dá voz às músicas de Canta canta, minha gente, álbum de grande impacto na sua infância e formação musical, como o artista reiterou diversas e repetidas vezes para o público que assistiu à apresentação iniciada já na primeira hora deste sábado, 24 de maio de 2014. "Se não fosse esse cara em 1974, eu não seria cantor. Eu não seria eu", sentenciou Otto, fazendo a sua filosofia do samba. A louvação a Martinho soou verdadeira, ouvida na voz de um cantor cujo primeiro álbum solo, lançado em 1998, se chamou Samba pra burro. E o fato é que, desde o primeiro número do show, Canta canta, minha gente (Martinho da Vila, 1974), Otto baixou forte no terreiro de Martinho, sustentado pelas percussões de Malê e de Marcos Axé, presenças igualmente fortes na banda arregimentada pelo baterista Pupillo Oliveira (diretor musical do show Otto canta Martinho) - sobretudo em números como o samba-enredo Tribo dos Carajás (Martinho da Vila, 1974). Regis Damasceno (baixo e violão), Rodrigo Campos (cavaco e violão) e Thiago França (sax e flauta) completam a banda. Complementada eventualmente por Otto, em números como o ruralista Calango vascaíno (Martinho da Vila, 1974), a percussão garante o batuque na azeitada cozinha. Contudo, os violões e as flautas foram fundamentais para criar o clima seresteiro que ambienta Malandrinha, modinha de 1926 da lavra do compositor fluminense Freire Júnior (1881 - 1956). Sucesso na voz do cantor carioca Francisco Alves (1898 - 1952), que lançou Malandrinha em gravação de 1927, a canção - revivida por Martinho em Canta canta, minha gente - tem seu tom lamentoso adequadamente realçado por Otto. Ao reabrir a cortina do passado seminal da música brasileira neste álbum de 1974, o sambista também foi na fonte e gravou Patrão, prenda seu gado, parceria dos pioneiros Donga (1890 - 1974), João da Baiana (1887 - 1974) e Pixinguinha (1897 - 1973) - santíssima trindade do samba que saiu de cena há 40 anos, quando Martinho preparava o álbum que o alçaria a um elevado patamar de vendas na indústria fonográfica brasileira da época. Patrão, prenda seu gado é um samba com toques de maxixe que Martinho levou para o universo do Brasil rural, em sintonia com o título.
Performático, Otto dança e rebola ao longo desse número que reitera sua intimidade com o repertório do álbum de Martinho. Não é fácil cantar Martinho da Vila, aliás. Seus sambas têm cadência toda própria e jamais obedecem a uma fórmula ou estrutura pré-definida. Mas Otto, cheio de energia na voz e na mente, dá conta de todos esses sambas, entrando no emaranhando sensual de Disritmia (Martinho da Vila, 1974) - uma das obras-primas do disco e de todo cancioneiro autoral de Martinho - e na batida do samba de terreiro Dente por dente (Martinho da Vila, 1974). Exemplo da capacidade do compositor de versar sobre o próprio universo do samba sem cair na exaltação simplória do gênero, Renascer das cinzas (Martinho da Vila, 1974) abriu alas no show por conta da vibração do elétrico Otto. Samba engajado que encoraja negros a lutar pela vida e pela igualdade racial, Nego, vem cantar (Martinho da Vila, 1974) tem a força de seu refrão ressaltada por Otto. Que bem poderia ter contido seu ímpeto de cantar trecho de sucesso do cantor mineiro Wando (1945 - 2012) - Fogo e paixão (Wando e Rose, 1985) - para não tirar Martinho do foco do show (a lembrança posterior de Emoriô, parceria de João Donato e Gilberto Gil lançada em 1975, também soou desnecessária, embora menos deslocada). Reapresentada nos anos 2000 pela cantora paulista Céu, saudada por Otto por estar presente na plateia, Visgo de jaca (Rildo Hora e Sérgio Cabral, 1974) teve reiterada sua modernidade enquanto Viajando (Martinho da Vila, 1984) provou que o samba de Martinho da Vila desconhece fronteiras harmônicas. A ponto de ser deglutido por Otto, 40 anos após a edição do LP Canta canta, minha gente, em show pulsante que faz a gente cantar enquanto vê Otto baixar com força no terreiro multifacetado de Martinho da Vila.
Otto é dos melhores de sua geração.
Criatividade, intuição e coração a serviço da música.
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