Mauro Ferreira no G1

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terça-feira, 3 de junho de 2014

Musical reaviva força arredia de Cássia escorado na sua incrível protagonista

Resenha de musical
Título:  Cássia Eller - O musical
Texto: Patrícia Andrade
Direção: João Fonseca e Vinícius Arneiro
Direção musical: Lan Lan   Codireção musical: Fernando Nunes
Direção de produção: Gustavo Nunes
Elenco: Tacy de Campos (como Cássia Eller), Eline Porto, Emerson Espíndola,  
           Evelyn Castro, Jana Figarella, Mário Hermeto e Thainá Gallo
Foto: Léo Mello / Studio Prime
Cotação: * * * *
Em cartaz no Teatro I do Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro (RJ)
De quarta-feira a domingo, até 20 de julho de 2014

Como muitas cantoras, Tacy de Campos também queria ser Cássia Eller - como diz o título da composição de Péricles Cavalcanti que pontua o recém-estreado musical sobre essa imortal e emblemática cantora e compositora carioca que passou como furacão pela música brasileira ao longo dos anos 1990. A diferença é que, no palco do Teatro I do Centro Cultural Banco do Brasil, essa até então desconhecida cantora e atriz curitibana parece ser Cássia Rejane Eller (10 de dezembro de 1962 - 29 de dezembro de 2001). Espetáculo de tom mais introspectivo, condizente com o temperamento arredio da personagem que perfila com precisão em duas horas, Cássia Eller - O musical se escora na incrível performance da protagonista escolhida entre mais de mil candidatas que também queriam ser Cássia Eller na vida ou, ao menos, ao longo dessas duas fluentes horas. Diferentemente de atuações igualmente memoráveis como as dos atores Emílio Dantas e Eriberto Leão, que mimetizaram Cazuza (1958 - 1990) e Jim Morrison (1943 - 1971) em musicais de proporções e estilos distintos, Tacy de Campos parece ser naturalmente Cássia Eller por ser tímida e arredia também fora de cena. E por se agigantar quando solta a voz rascante, de timbre similar ao de Cássia. Quando Tacy canta Malandragem (Frejat e Cazuza, 1994) - em número musical que sinaliza o momento em que a carreira da cantora dá salto de vendas e popularidade com a edição do álbum Cássia Eller (Polygram, 1994) - a semelhança é tamanha que parece que se ouve a gravação original lançada há 20 anos. O diretor João Fonseca - o mesmo dos bem-sucedidos musicais biográficos sobre os cantores cariocas Cazuza e Tim Maia (1942 - 1998) - mais uma vez acerta o tom ao orquestrar musical despojado, erguido em parceria com Vinícius Arneiro. Fiéis à simplicidade de Cássia, os diretores criaram espetáculo centrado nos números musicais feitos sob a direção musical da percussionista Lan Lan e do baixista Fernando Nunes. Os dois músicos tocaram com Cássia Eller e, por isso mesmo, jamais inventam moda no espetáculo, apresentando arranjos fiéis ao espírito do som da cantora, que manteve sua atitude rocker e marginal mesmo quando transitou pelo samba e pela MPB. Já o texto de Patrícia Andrade cumpre muito bem a função de reconstituir, em ágeis cenas episódicas, os principais passos da artista rumo ao estrelato. A autora comete somente um erro histórico ao sugerir no texto que Cássia decidiu cantar Smells like teen spirit (Dave Grohl, Krist Novoselic e Kurt Cobain, 1991) em sua apresentação no Rock in Rio de 2001 quando, na realidade, o hit-hino do grupo norte-americano Nirvana já fazia parte do repertório da cantora por ter sido incluído no roteiro do show da turnê Com você... meu mundo ficaria completo (1999). Descontado esse pequeno detalhe, o texto de Patrícia Andrade monta painel crível da vida e obra de Cássia sem tons didáticos ou diálogos artificiais tão comuns em produções biográficas. Está tudo lá: o embate ideológico com os pais na artificial Brasília (DF), a descoberta do amor e do sexo com a amiga Moema (Thainá Gallo) - ilustrada delicadamente com Flor do sol (Cássia Eller e Simone Saback), canção dos tempos seminais revelada somente em 2012 - e a iniciação profissional com Oswaldo Montenegro (Mário Hermeto, em composição naturalmente engraçada que não resvala na caricatura) na capital do Brasil. E está tudo lá aparentemente sem censura prévia dos herdeiros: o furor sexual de Cássia e o apego ao álcool, por exemplo, estão retratados em cena sem firulas. Mas o que sobressai e paira sobre todas as coisas é a voz de trovão de Cássia, tão bem reproduzida no palco por Tacy de Campos. Aliás, diferentemente da maioria dos musicais, que resultam mais vibrantes nos números coletivos, o espetáculo sobre Cássia Eller arrepia mais nos solos de Tacy, como Juventude transviada (Luiz Melodia, 1976) e Rubens (Mário Manga, 1986). Como atriz, Tacy dá conta dos diálogos - em que pesem um e outro tropeço no texto - porque, como dito, seu temperamento arredio reproduz naturalmente o comportamento arisco de Cássia Eller, artista de poucas e sinceras palavras. Como bem soube Maria Eugênia, a companheira fiel. Confiada ao desempenho de Eline Porto, Eugênia - ou Geninha, como Cássia chamava a mulher que também foi mãe de seu filho Francisco Eller, o Chicão - representa no texto os pontos de maior tensão dramática por ter sido o para-raio dos trovões da indomada Cássia Eller no seio de uma família atípica que tem seus momentos de harmonia expostos em cena ao som de 1º de julho (Renato Russo, 1994). Com Lan Lan, a paixão é retratada entre o toque flamenco de Soy gitano (José Monje, José Fernandez Torres e Vicente Amigo, 1989) - sucesso do cantor espanhol Camarón de la Isla (1950 - 1992) propagado por Cássia no show pesado que gerou o disco Veneno vivo (Polygram, 1998) - e a ternura de Luz dos olhos (Nando Reis, 2001). Na pele convincente de Emerson Espíndola, o cantor e compositor paulista Nando Reis tem papel destacado na parte final do musical assim como teve na fase final da vida pessoal e profissional de Cássia. A canção Relicário (Nando Reis, 2000) cumpre bem no musical o papel de ilustrar o amor terno que brotou entre os dois cantores. O dueto entre Cássia e Nando reproduz o número do Acústico MTV (Universal Music, 2001) que injetou popularidade e dinheiro na vida de Cássia Eller na mesma intensa medida em que os efeitos colaterais do sucesso oprimiram a cantora - e, embora não caia na tentação de justificar o que não tem explicação, o texto deixa bem claro o quanto a fama avassaladora vivida por Cássia ao longo de 2001 contribuiu nocivamente para abreviar sua vida ao fim daquele ano. Sucesso da cantora francesa Edith Piaf (1915 - 1963) em 1960, a canção Non, je ne regrette rien (Charles Dumont e Michel Vaucaire, 1956) - revivida por Cássia em seu Acústico MTV - simboliza no musical o inventário de uma vida louca vida encerrada precocemente. Mas que ainda pulsa nas gravações pela força estranha da intérprete, ora reavivada e reafirmada por excelente musical criado no tamanho exato de Cássia Eller e sustentado pela incrível atuação de Tacy de Campos. Tacy é Eller!!

4 comentários:

Mauro Ferreira disse...

Como muitas cantoras, Tacy de Campos também queria ser Cássia Eller - como diz o título da composição de Péricles Cavalcanti que pontua o recém-estreado musical sobre essa emblemática cantora e compositora carioca que passou como furacão pela música brasileira ao longo dos anos 1990. A diferença é que, no palco do Teatro I do Centro Cultural Banco do Brasil, essa até então desconhecida cantora e atriz curitibana parece ser Cássia Rejane Eller (10 de dezembro de 1962 - 29 de dezembro de 2001). Espetáculo de tom mais introspectivo, condizente com o temperamento arredio da personagem que perfila com precisão em duas horas, Cássia Eller - O musical se escora na incrível performance da protagonista escolhida entre mais de mil candidatas que também queriam ser Cássia Eller na vida ou, ao menos, ao longo dessas duas fluentes horas. Diferentemente de atuações igualmente memoráveis como as dos atores Emílio Dantas e Eriberto Leão, que mimetizaram Cazuza (1958 - 1990) e Jim Morrison (1943 - 1971) em musicais de proporções e estilos distintos, Tacy de Campos parece ser naturalmente Cássia Eller por ser tímida e arredia também fora de cena. E por se agigantar quando solta a voz rascante, de timbre similar ao de Cássia. Quando Tacy canta Malandragem (Frejat e Cazuza, 1994) - em número musical que sinaliza o momento em que a carreira da cantora dá salto de vendas e popularidade com a edição do álbum Cássia Eller (Polygram, 1994) - a semelhança é tamanha que parece que se ouve a gravação original lançada há 20 anos. O diretor João Fonseca - o mesmo dos bem-sucedidos musicais biográficos sobre os cantores cariocas Cazuza e Tim Maia (1942 - 1998) - mais uma vez acerta o tom ao orquestrar um musical despojado, centrado nos números musicais feitos sob a direção musical da percussionista LanLan e do baixista Fernando Nunes. Os dois músicos tocaram com Cássia Eller e, por isso mesmo, jamais inventam moda no espetáculo, apresentando arranjos fiéis ao espírito do som da cantora, que manteve sua atitude rocker e marginal mesmo quando transitou pelo samba e pela MPB. Já o texto de Patrícia Andrade cumpre muito bem a função de reconstituir, em ágeis cenas episódicas, os principais passos da artista rumo ao estrelato. A autora comete somente um erro histórico ao sugerir no texto que Cássia decidiu cantar Smells like teen spirit (Dave Grohl, Krist Novoselic e Kurt Cobain, 1991) em sua apresentação no Rock in Rio de 2001 quando, na realidade, o hit-hino do grupo norte-americano Nirvana já fazia parte do repertório da cantora por ter sido incluído no roteiro do show da turnê Com você... meu mundo ficaria completo (1999). Descontado esse pequeno detalhe, o texto de Patrícia Andrade monta painel crível da vida e obra de Cássia sem tons didáticos ou diálogos artificiais tão comuns em produções biográficas. Está tudo lá: o embate ideológico com os pais em Brasília (DF), a descoberta do amor e do sexo com a amiga Moema (Thainá Gallo) - ilustrada delicadamente com Flor do sol (Cássia Eller e Simone Saback), canção dos tempos seminais revelada somente em 2012 - e a iniciação profissional com Oswaldo Montenegro (Mário Hermeto, em composição naturalmente engraçada que não resvala na caricatura) na capital do Brasil. E está tudo lá aparentemente sem censura prévia dos herdeiros: o furor sexual de Cássia e o apego ao álcool, por exemplo, estão retratados em cena sem firulas. Mas o que sobressai e paira sobre todas as coisas é a voz de trovão de Cássia, tão bem reproduzida no palco por Tacy de Campos. Aliás, diferentemente da maioria dos musicais, que resultam mais vibrantes nos números coletivos, o espetáculo sobre Cássia Eller arrepia mais nos solos de Tacy, como Juventude transviada (Luiz Melodia, 1976) e Rubens (Mário Manga).

Mauro Ferreira disse...

Como atriz, Tacy dá conta dos diálogos - em que pesem um e outro tropeço no texto - porque, como já dito, seu temperamento arredio reproduz naturalmente o comportamento arisco de Cássia Eller, artista de poucas e sinceras palavras. Como bem soube Maria Eugênia, a companheira fiel. Confiada ao desempenho de Eline Porto, Eugênia - ou Geninha, como Cássia chamava a mulher que também foi mãe de seu filho Francisco Eller, o Chicão - representa no texto os pontos de maior tensão dramática por ter sido o para-raio dos trovões da indomada Cássia Eller no seio de uma família atípica que tem seus momentos de harmonia expostos em cena ao som de 1º de julho (Renato Russo, 1994). Com LanLan, a paixão é retratada entre o toque flamenco de Soy gitano (José Monje, José Fernandez Torres e Vicente Amigo, 1989) - sucesso do cantor espanhol Camarón de la Isla (1950 - 1992) propagado por Cássia no show pesado que gerou o disco Veneno vivo (Polygram, 1998) - e a ternura de Luz dos olhos (Nando Reis, 2001). Na pele convincente de Emerson Espíndola, o cantor e compositor paulista Nando Reis tem papel destacado na parte final do musical assim como teve na fase final da vida pessoal e profissional de Cássia. A canção Relicário (Nando Reis, 2000) cumpre bem no musical o papel de ilustrar o amor terno que brotou entre os dois cantores. O dueto entre Cássia e Nando reproduz o número do Acústico MTV (Universal Music, 2001) que injetou popularidade e dinheiro na vida de Cássia Eller na mesma intensa medida em que os efeitos colaterais do sucesso oprimiram a cantora - e, embora não caia na tentação de justificar o que não tem explicação, o texto deixa bem claro o quanto a fama avassaladora vivida por Cássia ao longo de 2001 contribuiu nocivamente para abreviar sua vida ao fim daquele ano. Sucesso da cantora francesa Edith Piaf (1915 - 1963) em 1960, a canção Non, je ne regrette rien (Charles Dumont e Michel Vaucaire, 1956) - revivida por Cássia em seu Acústico MTV - simboliza no musical o inventário de uma vida louca vida encerrada precocemente. Mas que ainda pulsa nas gravações pela força estranha da intérprete, ora reavivada e reafirmada por excelente musical criado no tamanho exato de Cássia Eller e sustentado pela incrível atuação de Tacy de Campos.

Felipe dos Santos disse...

Parece que este é o grande musical biográfico após "Vale tudo - o som e a fúria de Tim Maia", na opinião de Mauro.

Espero que sim. Afinal de contas, "Elis - A Musical" foi apenas correto (aliás, Laila Garin acertou ao fugir de ser "papel carbono", impossível, no caso). E "Rita Lee mora ao lado" é o chamado "pobre, mas limpinho": é honesto na homenagem, Mel Lisboa se esforçou, mas tem umas coisas ali beeeem amadoras.

Felipe dos Santos Souza

Unknown disse...

Assisti o fraco "Rita Lee mora ao lado", e o maravilhoso "Lupi, o musical - uma vida em estado de paixão". Ao ler esta crítica de Cássia Eller - o musical, fiquei interessada em assistir. Parece que o Brasil está evoluindo neste gênero. Isto é ótimo!