quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Salmaso alcança a perfeição ao cantar o Brasil clássico de Guinga e Pinheiro

Resenha de CD
Título: Corpo de baile
Artista: Mônica Salmaso
Gravadora: Biscoito Fino
Cotação: * * * * *

Décimo álbum da cantora paulista Mônica Salmaso, Corpo de baile é disco perfeito, lindo, encantador. Cantora vocacionada para interpretações pautadas por rigores eruditos, Salmaso encontra na obra de Guinga e Paulo César Pinheiro o veículo ideal para a exposição de seu canto preciso. Mais do que a reiterar a perfeita comunhão entre técnica e emoção na voz da cantora (emoção entranhada na atmosfera formal que envolve o canto da artista, mas viva), Corpo de baile já se revela um disco necessário por revelar grandes músicas inéditas dessa parceria iniciada nos anos 1970 e dissolvida na década de 1980 após ruidosa briga entre os compositores cariocas - separação que propiciou a união de Guinga com o também carioca Aldir Blanc, em outro perfeito casamento musical que gerou parceria de maestria realçada pela cantora paraense Leila Pinheiro em um de seus melhores álbuns, Catavento e girassol (EMI-Odeon, 1996).O que espanta em Corpo de baile é a alta qualidade das seis inéditas. São obras-primas como o choro-canção Fim dos tempos e o fado Navegante, que evoca a alma de Lisboa ao versar com poesia sobre um conquistador que deixa o cais da solidão disposto a desbravar paixões além-mar. Navegante está sagazmente alocada no disco ao lado de Porto de Araújo, música lançada por Miúcha em álbum de 1989 que desembarca na voz de Mônica entre as cordas do Quarteto Carlos Gomes, peça fundamental do arranjo orquestrado por Luca Raele. O time de arranjadores do disco - produzido por Teco Cardoso sob a direção musical de Salmaso - compreende a grandeza da obra e contribui decisivamente para a perfeição do disco. Dori Caymmi, Luca Raele, Nailor Azevedo Proveta, Nelson Ayres, Paulo Aragão, Teco Cardoso e Tiago Costa formam o dream team de arranjadores do álbum, todos hábeis na formatação camerística de obra dissociada do tempo presente. A propósito, o figurino vintage usado por Salmaso na capa e nas fotos promocionais do álbum traduz com precisão o clima do repertório, pontuado por valsas como a inédita Sedutora, a também inédita música-título Corpo de baileNoturna (1989), Nonsense - esta já gravada por Miúcha no mesmo disco de 1989 que apresentou Porto de Araújo - e Fonte abandonada, já abordada por Guinga em disco de 2003. Nonsense tem letra magistralmente construída por Pinheiro com palavras em português de sonoridade francesa, seguindo a receita de Chico Buarque na composição de sua Joana Francesa (1973). Por também habitar um passado já remoto como compositor, Pinheiro se adequou perfeitamente ao espírito da música de Guinga. Que sempre bebeu das ricas fontes dos cancioneiros soberanos de Antonio Carlos Jobim (1927 - 1994) e Heitor Villa-Lobos (1887 - 1959), evocados sobretudo em Quadrão (1980) e na inédita Curimã, cujo universo indígena é povoado na faixa pela voz incidental de Marluí Miranda. Única música realmente conhecida dentre as 14 selecionadas por Salmaso para Corpo de baile, todas tratadas como peças de câmara pela cantora, Bolero de Satã (1976) - propagado em 1979 por Elis Regina (1945 - 1982) em dueto com Cauby Peixoto - tem no registro de Salmaso a prova de que a cantora consegue embutir sentimento em seu canto técnico. Mas é um sentimento depurado, sem excessos, sem melodrama, o que faz o disco correr o risco de soar pouco emotivo, ou frio, para ouvidos mais habituados a interpretações mais passionais. E assim - majestoso, antigo (mas não velho...) - caminha Corpo de baile, álbum que evoca um Brasil de tempos idos ao apresentar a inédita marcha Rancho da sete cores e ao se embrenhar pelo universo caipira no passo embolado de Violada. Esse caminho é atravessado no fim pela Procissão da Padroeira, arranjada por Dori Caymmi no mesmo tom solene do canto de Mônica Salmaso, cantora que dá baile na concorrência ao beber dessa rica fonte abandonada: a parceria de Guinga e Paulo César Pinheiro, tradutores musicais de Brasil vintage, bonito, repleto de riquezas a serem exploradas.  É um Brasil clássico na forma, só que atemporal pela modernidade de Guinga.

17 comentários:

  1. Décimo álbum da cantora paulista Mônica Salmaso, Corpo de baile é disco perfeito, lindo, encantador. Cantora vocacionada para interpretações pautadas por rigores eruditos, Salmaso encontra na obra de Guinga e Paulo César Pinheiro o veículo ideal para a exposição de seu canto preciso. Mais do que a reiterar a perfeita comunhão entre técnica e emoção na voz da cantora (emoção entranhada na atmosfera formal que envolve o canto da artista, mas viva), Corpo de baile já se revela um disco necessário por revelar grandes músicas inéditas dessa parceria iniciada nos anos 1970 e dissolvida na década de 1980 após ruidosa briga entre os compositores cariocas - separação que propiciou a união de Guinga com o também carioca Aldir Blanc, em outro perfeito casamento musical que gerou parceria de maestria realçada pela cantora paraense Leila Pinheiro em um de seus melhores álbuns, Catavento e girassol (EMI-Odeon, 1996).O que espanta em Corpo de baile é a alta qualidade das seis inéditas. São obras-primas como o choro-canção Fim dos tempos e o fado Navegante, que evoca a alma de Lisboa ao versar com poesia sobre um conquistador que deixa o cais da solidão disposto a desbravar paixões além-mar. Navegante está sagazmente alocada no disco ao lado de Porto de Araújo, música lançada por Miúcha em álbum de 1989 que desembarca na voz de Mônica entre as cordas do Quarteto Carlos Gomes, peça fundamental do arranjo orquestrado por Luca Raele. O time de arranjadores do disco - produzido por Teco Cardoso sob a direção musical de Salmaso - compreende a grandeza da obra e contribui decisivamente para a perfeição do disco. Dori Caymmi, Luca Raele, Nailor Azevedo Proveta, Nelson Ayres, Paulo Aragão, Teco Cardoso e Tiago Costa formam o dream team de arranjadores do álbum, todos hábeis na formatação camerística de obra dissociada do tempo presente. A propósito, o figurino vintage usado por Salmaso na capa e nas fotos promocionais do álbum traduz com precisão o clima do repertório, pontuado por valsas como a inédita Sedutora, a também inédita música-título Corpo de baile, Noturna (1991), Nonsense - esta já gravada por Miúcha no mesmo disco de 1989 que apresentou Porto de Araújo - e Fonte abandonada, já abordada por Guinga em disco de 2003. Nonsense tem letra magistralmente construída por Pinheiro com palavras em português de sonoridade francesa, seguindo a receita de Chico Buarque na composição de sua Joana Francesa (1973). Por também habitar um passado já remoto como compositor, Pinheiro se adequou perfeitamente ao espírito da música de Guinga. Que sempre bebeu das ricas fontes dos cancioneiros soberanos de Antonio Carlos Jobim (1927 - 1994) e Heitor Villa-Lobos (1887 - 1959), evocados sobretudo em Quadrão (1980) e na inédita Curimã, cujo universo indígena é povoado na faixa pela voz incidental de Marluí Miranda. Única música realmente conhecida dentre as 14 selecionadas por Salmaso para Corpo de baile, todas tratadas como peças de câmara pela cantora, Bolero de Satã - lançado em 1979 por Elis Regina (1945 - 1982) em dueto com Cauby Peixoto - tem no registro de Salmaso a prova de que a cantora consegue embutir sentimento em seu canto técnico. Mas é um sentimento depurado, sem excessos, sem melodrama, o que faz o disco correr o risco de soar pouco emotivo, ou frio, para ouvidos mais habituados a interpretações mais passionais. E assim - majestoso, antigo (mas não velho...) - caminha Corpo de baile, álbum que evoca um Brasil de tempos idos ao apresentar a inédita marcha Rancho da sete cores e ao se embrenhar pelo universo caipira no passo agalopado de Violada. Esse caminho é atravessado no fim pela Procissão da Padroeira, arranjada por Dori Caymmi no mesmo tom solene do canto de Mônica Salmaso, cantora que dá um baile na concorrência ao beber dessa rica fonte abandonada que é a parceria de Guinga e Paulo César Pinheiro, tradutores musicais de Brasil vintage, bonito, repleto de riquezas a serem exploradas.

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  2. Bela e precisa resenha,Mauro.Mônica esta no auge,ela bebe na rica fonte que essa leva de concorrentes preferiram ignorar.Só Bethânia tem essa mesma coragem hoje.Nana que é mais representaria todo esse sentido,mas já se cansou há trinta anos.

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  5. Concordo, Noca. Salmaso em nenhum momento atacou diretamente colegas da cena independente (da qual, aliás, sempre fez parte). Muita gente vestiu a carapuça. Abs, grato pelo comentário, MauroF

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  6. Noca, sorry, por acidente, excluí seu comentário sobre a polêmica envolvendo Salmaso. Ia excluir outro comentário, mais agressivo, mas errei o alvo. Abs, MauroF

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  7. Como é bom quando temos em mãos um trabalho que beira a perfeição! — Mônica Salmaso pode não ser "popular", nem mesmo "queridinha hype" dos tais antenados/estressados de plantão. As qualidades dela são para quem prefere, digamos, a degustação, a fruição do belo, mesmo que de outros tempos, mesmo que de outra estética, aquela estética adormecida que HÁ entre nós e nem sabemos... Salve, salve Mônica Salmaso!

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  8. Concordo, Mauro, um discaço o “Corpo de Baile”, espero até, quem sabe, um vol.2, pois, com certeza, Guinga e Paulinho Pinheiro ainda têm muitas outras pérolas musicais ( ainda lamento a não inclusão de "Alma Vazia" no disco). Fica aí uma sugestão para outras cantoras, Guinga/PCPinheiro e Guinga/Aldir Blanc, novos Cds abordando esses mestres! Só estranhei um pouco os arranjos com muitas cordas ( excessivamente 'camerísticos', conforme vc disse), mas são muito bonitos, sem dúvida. A linda "Nonsense" ficou bem melhor do que com a Miúcha ( em termos de “música francesa do Brasil", ainda gosto mais de "Mise-en-Scène" - Guinga e Aldir) mas “Porto de Araújo” ainda prefiro com a Simone Guimarães, por causa do arranjo destacando o violão do Guinga, o baixo e o teclado suave, apesar da voz não tão bonita da cantora. Mas, enfim, ótima resenha, Mauro, “Corpo de Baile” é uma beleza! Ah, um vol.2...

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  9. E quanta gente vestiu a carapuça...muita cantora amargurada e afins!! Viva Monica e sua obra de verdade e bom gosto!!

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  10. Comprei sem pestanejar! Essa é grande.

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  11. Sem problemas,Mauro!Foi ate bom,meu comentario estava meio confuso mesmo(rs...)Tao confuso quanto o momento politico que esta ai,em que somos cobrados a estar de um lado.Tenho certeza que Monica nao quis tocar em quem mais a critica.Tem gente boa ai,que a gente gosta e respeita que argumenta ~fissuras~ entre MPB e musica popular brasileira.Tenho certeza tambem que Monica ve nossa musica como um todo.Sem rupturas ou panelismos.Cre na arte,mais que em ideologias,independente,sem querer agradar ou servir a nincho algum.Abrs!

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  12. Mauro, sua "crítica" sobre o trabalho da Salmaso está maravilhosa: leve, concisa, poética, artística. Parabéns!- e parabéns à Música, musa de Salmaso, Guinga, Pinheiro, Teco, ...

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  13. O que mais gosto no trabalho da Mônica são os conceitos que permeiam os cds que ela lança. Não é simplesmente um disco "para tocar no rádio", "para vender milhões" ou coisas do tipo. É um trabalho que carece de uma certa atenção e cuidado para se entender e apreciar da forma como ele foi concebido para ser. Achei o cd muito bom, um dos melhores da carreira dela, em vários pontos, tanto produção quando a escolha do repertório. A capa, que tinha me causado estranheza quando lançada, passou a fazer mais sentido agora (mas ainda sinto que preciso ver o projeto gráfico completo, o cd físico, para ter uma avaliação mais precisa sobre).

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  14. Baixei no iTunes e está lindo mesmo! Vou comprar o CD agora porque fiquei com vontade de ter o álbum físico.

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  15. maravilhoso disco. já tenho minhas favoritas (oito!) e não paro de ouvir. "Fonte abandonada" é de uma grandeza ímpar, tão boa quanto a gravação de Guinga - e acho difícil bater um registro dele. até "Bolero de satã", fiquei besta!

    Mônica só precisa tomar cuidado com a fala pra não soar esnobe ou preconceituosa demais uma vez que existe música excelente sendo feita muito além do hype que muitos criticam (as viúvas da MPB).

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  16. Ainda prefiro Catavento e girassol. Esse sim, uma obra prima.

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  17. Monica Salmaso nos acalenta a alma e nos dá esperança. A música brasileira em sua essência e beleza ainda vive. Salve Salmaso. Salve a música brasileira que com ela se nivela por cima.

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