Título: Goma-laca - Afrobrasilidades em 78 RPM
Artista: Vários
Gravadora: Edição independente
Cotação: * * * 1/2
♪ Fabricados no Brasil de 1902 a 1964, os discos de 78 rotações por minuto eram produzidos a partir de mistura de cera de carnaúba com goma-laca em pó. Por isso, Goma-laca é o nome do núcleo criado em 2009 por Biancamaria Binazzi e Ronaldo Evangelista para pesquisar e revitalizar gravações antigas. Goma-laca é também o título do disco produzido por Evangelista sob direção musical de Letieres Leite, autor dos arranjos das onze gravações alinhadas neste álbum que desencava e areja a raiz africana na qual estão baseados os registros originais dos onze temas ouvidos no bom CD. Compositor, arranjador e maestro da Orkestra Rumpilezz, big-band baiana que conecta a música afro-brasileira ao jazz, Letieres consegue imprimir refinada contemporaneidade nas gravações do disco subintitulado Afrobrasilidades em 78 RPM para delimitar o período - centrado na primeira metade do século XX - no qual estão enraizados os temas. Letieres Leite, que toca flauta no disco, se junta a músicas da atual cena paulistana. Majoritariamente egresso dessa cena, o naipe de intérpretes do álbum - Juçara Marçal, Karina Buhr, Lucas Santtana e Russo Passapusso - dá voz a esses temas com maior ou menor vigor e propriedade. O maior destaque do time de intérpretes é Juçara, ótima cantora paulistana que emergiu com força no início do ano com seu disco solo Encarnado (Independente, 2014). Por seu já pré-existente elo com temas que saúdam orixás, Juçara faz Exu e Ogum baixarem com força no terreiro contemporâneo de Goma-laca. De domínio público, os dois temas fazem parte do disco de 78 rotações Candomblé, gravado pelo grupo Filhos de Nagô e lançado em janeiro de 1931, em iniciativa pioneira de registrar temas africanos de origem iorubá. No fim do disco, Juçara se junta a Russo Passopusso - vocalista da banda BaianaSystem que acaba de lançar seu primeiro disco solo - na recriação de Cala boca, menino, tema oriundo do universo da capoeira, do qual se apropriou o centenário Dorival Caymmi (1914 - 2008), de maneira assumida, na composição da música originalmente gravada em 1973 por João Donato. Nessa faixa, o canto de Passapusso parece incorporar um preto velho, fazendo ressoar com força um lamento negro que ecoa com menor propriedade quando Passapusso dá voz a Batuque (Domínio público) e a Babaô Miloquê (Josué de Barros), dois temas que ganharam registros fonográficos em 1929. Os outros dois intérpretes escalados para Goma-laca - Karina Buhr e Lucas Santtana - trazem pouca ou nenhuma carga de ancestralidade em seus cantos. Tanto que o percussivo arranjo afro-indígena criado por Letieres para Guriatã (Domínio público) - cantiga do Norte registrada em disco em 1930 pelo cantor Ratinho com o grupo Batutas do Norte - se impõe na faixa sobre o canto de Buhr, que também segue a toada nordestina ao dar voz a Minervina (Domínio público), tema gravado originalmente por Vanja Orico em disco de 1954. Já Lucas Santtana chega a soar pop ao entrar no ritmo dos versos da embolada Não tenho medo, não (Almirante e Chico Catolé, 1936), embora também seja o comandante vocal de Vou vender meu barco (Valentim do Santos e Marinho Costa Lima, 1946), faixa que embute dissonâncias que tornam bravio o mar em que navega a canção praieira lançada em disco pelo Quarteto Quitandinha. Vozes à parte, Goma-laca cumpre seu objetivo ao fixar sons contemporâneos na matriz afro-brasileira da música produzida no século XX sem ranços folclóricos, mas sem sons modernosos. A cola dessas afrobrasilidades de 78 RPM são os arranjos do genial Letieres Leite.
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Fabricados no Brasil de 1902 a 1964, os discos de 78 rotações por minuto eram produzidos a partir de mistura de cera de carnaúba com goma-laca em pó. Por isso, Goma-laca é o nome do núcleo criado em 2009 por Biancamaria Binazzi e Ronaldo Evangelista para pesquisar e revitalizar gravações antigas. Goma-laca é também o título do disco produzido por Evangelista sob direção musical de Letieres Leite, autor dos arranjos das onze gravações alinhadas neste álbum que desencava e areja a raiz africana na qual estão baseados os registros originais dos onze temas ouvidos no bom CD. Compositor, arranjador e maestro da Orkestra Rumpilezz, big-band baiana que conecta a música afro-brasileira ao jazz, Letieres consegue imprimir refinada contemporaneidade nas gravações do disco subintitulado Afrobrasilidades em 78 RPM para delimitar o período - centrado na primeira metade do século XX - no qual estão enraizados os temas. Letieres Leite, que toca flauta no disco, se junta a músicas da atual cena paulistana. Majoritariamente egresso dessa cena, o naipe de intérpretes do álbum - Juçara Marçal, Karina Buhr, Lucas Santtana e Russo Passapusso - dá voz a esses temas com maior ou menor vigor e propriedade. O maior destaque do time de intérpretes é Juçara, ótima cantora paulistana que emergiu com força no início do ano com seu disco solo Encarnado (Independente, 2014). Por seu já pré-existente elo com temas que saúdam orixás, Juçara faz Exu e Ogum baixarem com força no terreiro contemporâneo de Goma-laca. De domínio público, os dois temas fazem parte do disco de 78 rotações Candomblé, gravado pelo grupo Filhos de Nagô e lançado em janeiro de 1931, em iniciativa pioneira de registrar temas africanos de origem iorubá. No fim do disco, Juçara se junta a Russo Passopusso - vocalista da banda BaianaSystem que acaba de lançar seu primeiro disco solo - na recriação de Cala boca, menino, tema oriundo do universo da capoeira, do qual se apropriou o centenário Dorival Caymmi (1914 - 2008), de maneira assumida, na composição da música originalmente gravada em 1973 por João Donato. Nessa faixa, o canto de Passapusso parece incorporar um preto velho, fazendo ressoar com força um lamento negro que ecoa com menor propriedade quando Passapusso dá voz a Batuque (Domínio público) e a Babaô Miloquê (Josué de Barros), dois temas que ganharam registros fonográficos em 1929. Os outros dois intérpretes escalados para Goma-laca - Karina Buhr e Lucas Santtana - trazem pouca ou nenhuma carga de ancestralidade em seus cantos. Tanto que o percussivo arranjo afro-indígena criado por Letieres para Guriatã (Domínio público) - cantiga do Norte registrada em disco em 1930 pelo cantor Ratinho com o grupo Batutas do Norte - se impõe na faixa sobre o canto de Buhr, que também segue a toada nordestina ao dar voz a Minervina (Domínio público), tema gravado originalmente por Vanja Orico em disco de 1954. Já Lucas Santtana chega a soar pop ao entrar no tom do proto-rap contido no ritmo dos versos da embolada Não tenho medo, não (Almirante e Chico Catolé, 1936). Vozes à parte, Goma-laca cumpre seu objetivo ao fixar sons contemporâneos na matriz afro-brasileira da música produzida no século XX sem ranços folclóricos. A cola são os arranjos do genial Letieres Leite.
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