Mauro Ferreira no G1

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quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Musical longo sobre Simonal acerta o ponto do 'champignon' no segundo ato

Resenha de musical de teatro
Título: S'imbora o musical - A história de Wilson Simonal
Texto: Nelson Motta e Patrícia Andrade
Direção: Pedro Brício
Direção musical: Alexandre Elias
Produção musical: Max de Castro
Elenco: Ícaro Silva (como Simonal), Thelmo Fernandes (como Carlos Imperial) e Gabriela

              Carneiro da Cunha (como Tereza), entre outros
Foto: Leo Aversa
Cotação: * * *
Musical em cartaz no Teatro Carlos Gomes, no Rio de Janeiro (RJ), até 12 de abril de 2015

No dicionário particular do cantor carioca Wilson Simonal (23 de fevereiro de 1938 - 25 de junho de 2000), champignon é termo que significava suingue, balanço, o molho extra que ele pôs em interpretações cheias de charme e veneno que o elevaram na segunda metade dos anos 1960 à condição de primeiro popstar negro do Brasil. Recém-estreado no Rio de Janeiro (RJ), onde vai ficar em cartaz no Teatro Carlos Gomes de quinta-feira a domingo até 12 de abril de 2015, o musical sobre Simonal acerta o ponto do champignon em seu segundo ato. É quando os autores Nelson Motta e Patrícia Andrade - dupla que assinou o texto de Elis, a musical (2013), bem-sucedido espetáculo ainda em cartaz - esboçam uma dramaturgia inexistente no gorduroso primeiro ato. A rigor, S'imbora o musical - A história de Wilson Simonal segue à risca a receita rentável dos espetáculos biográficos sobre ídolos da música. A exposição dos fatos mais relevantes da vida e obra do biografado, em painel cronológico e superficial, parece ser mero pretexto para a apresentação de números musicais que mexem com a memória afetiva do público-alvo desse gênero de musical. Espetáculo que marca a entrada em cena da Planmusic (empresa que debuta no mercado teatral com a credibilidade obtida pelo empresário Luiz Oscar Niemeyer na área musical), S'imbora reitera vícios e virtudes do gênero com o mérito de retratar Simonal com nuances. Embora o texto tenda a absolvê-lo das acusações (nunca efetivamente comprovadas) de delação de colegas ao Dops (principal órgão repressor do regime ditatorial em vigor no Brasil de 1964 a 1985), promovendo ao fim a redenção do cantor, Simonal é posto em cena com todas suas contradições. Ao carisma inegável, contrapõe-se em cena uma arrogância que, na vida real, contribuiu para que o artista fosse enterrado vivo na primeira metade dos anos 1970. Todo o segundo ato é impregnado das sombras que nublaram a alma de Simonal após o controvertido episódio que destruiu sua carreira. E, nesse ato, o protagonista Ícaro Silva tem um de seus melhores momentos no espetáculo ao puxar Cordão (1971), a música de Chico Buarque gravada por Simonal em álbum melancólico dessa fase crepuscular, Ninguém proíbe o amor (RCA, 1975), como um manifesto de resistência. A propósito, Ícaro Silva está bem como Simonal e eventualmente brilha como ator e cantor, mas sem impactar. Não há na sua personificação de Simonal o traço de incorporação observado nas performances dos atores que arrebataram o público ao protagonizarem recentes musicais sobre Tim Maia (1942 - 1998), Cazuza (1958 - 1990) e Cássia Eller (1962 - 2001), por exemplo. De todo modo, Ícaro vai crescendo ao longo das três horas do espetáculo. Desenvolto, acerta o tom da intervenção na plateia ao espremer o suco de Meu limão, meu limoeiro - o tema folclórico de origem nordestina temperado por Simonal com champignon - e ao dar voz a músicas emblemáticas da discografia do cantor, casos de Nem vem que não tem (Carlos Imperial, 1967) e Tributo a Martin Luther King (Wilson Simonal e Ronaldo Bôscoli, 1966), esta uma prova da consciência social de Simonal, ídolo que jamais aceitou o papel submisso e grato imposto aos negros famosos. Ícaro é o protagonista, mas, no primeiro terço do primeiro ato, chega a ser eclipsado em cena por Thelmo Fernandes, ator que marca bela presença no musical ao personificar com carisma o compositor, produtor e apresentador capixaba Carlos Imperial (1935 - 1992), a quem o texto confia a função de narrador da história de Simonal (a quem Imperial deu as primeiras oportunidades na carreira). O problema é que toda a parte dedicada a Imperial no início roqueiro do primeiro ato resulta demasiadamente longa. Números musicais como Rock around the clock (Max Freedman e James Myers, 1954) são perfeitamente dispensáveis no roteiro porque, a rigor, em nada contribuem para avançar na história de Simonal. Até porque, em certos momentos da primeira metade do primeiro ato, fica a impressão de que a figura central do musical é Imperial, e não Simonal. Por falar no roteiro, um dos números mais criativos - veículo para a exposição da versatilidade e do suingue de Simonal - é Lobo bobo (música creditada no programa da peça somente a Carlos Lyra, com omissão do nome de Ronaldo Bôscoli, parceiro de Lyra no tema). Nesse número, Ícaro alterna o tom de sua interpretação, se dividindo em questão de segundos entre o canto cheio de bossa do programa de TV O fino da bossa e a abordagem mais envenenada e pop do programa rival Jovem Guarda. Simonal tinha bossa e tinha também soul. Como cantor, Ícaro Silva consegue evocar em cena o suingue do artista quando interpreta músicas como Balanço Zona Sul (1963), música de autoria de Tito Madi desatentamente creditada a Simonal no programa do espetáculo. Como diretor, Pedro Brício surpreende a plateia ao projetar em telão a imagem de um carro condizente com o Carango do título desta parceria de Imperial com Nonato Buzar (1932 - 2014), compositor maranhense associado à Pilantragem, o movimento arquitetado por Imperial para alavancar o sucesso de Simonal na segunda metade dos anos 1960. Como diretor musical, autor dos arranjos criados com Max de Castro (filho de Simonal), Alexandre Elias acerta porque não inventa moda. Dá para identificar em Sá Marina (Tibério Gaspar e Antonio Adolfo, 1968) - número que retrata no musical a passagem de Simonal pelo palco do Olympia de Paris em 1968 - a pulsação do imbatível arranjo original desse grande sucesso do cantor. No segundo ato, mais conciso, a dramaturgia entra em cena através de diálogos que retratam os desajustes de Simonal com a mulher Tereza (papel de Gabriela Carneiro da Cunha), com a polícia, com os todos-poderosos da TV Globo e com o mundo de forma geral. É a fase em que o artista se deixa anestesiar pela bebida. Mas, como manda a receita dos musicais do gênero, o final tem que ser para cima. Uma redenção além-túmulo - incoerente com o tom realista do texto - prepara o clima para o gran finale com medley de sucessos de Wilson Simonal, o cantor que fez o povo inteiro cantar. Mas que foi esquecido por esse mesmo povo ao dar o passo em falso - a prensa através de agentes Dops em contador do qual suspeitava de roubo em sua empresa - que lhe custou o sucesso e, de certa forma, a vida. S'imbora honra a memória do ótimo cantor ao recontar sua história, mesmo com gorduras no longo primeiro ato.

4 comentários:

Mauro Ferreira disse...

♪ No dicionário particular do cantor carioca Wilson Simonal (23 de fevereiro de 1938 - 25 de junho de 2000), champignon é termo que significava suingue, balanço, o molho extra que ele pôs em interpretações cheias de charme e veneno que o elevaram na segunda metade dos anos 1960 à condição de primeiro popstar negro do Brasil. Recém-estreado no Rio de Janeiro (RJ), onde vai ficar em cartaz no Teatro Carlos Gomes de quinta-feira a domingo até 12 de abril de 2015, o musical sobre Simonal acerta o ponto do champignon em seu segundo ato. É quando os autores Nelson Motta e Patrícia Andrade - dupla que assinou o texto de Elis, a musical (2013), bem-sucedido espetáculo ainda em cartaz - esboçam uma dramaturgia inexistente no gorduroso primeiro ato. A rigor, S'imbora o musical - A história de Wilson Simonal segue à risca a receita rentável dos espetáculos biográficos sobre ídolos da música. A exposição dos fatos mais relevantes da vida e obra do biografado, em painel cronológico e superficial, parece ser mero pretexto para a apresentação de números musicais que mexem com a memória afetiva do público-alvo desse gênero de musical. Espetáculo que marca a entrada em cena da Planmusic (empresa que debuta no mercado teatral com a credibilidade obtida pelo empresário Luiz Oscar Niemeyer na área musical), S'imbora reitera vícios e virtudes do gênero com o mérito de retratar Simonal com nuances. Embora o texto tenda a absolvê-lo das acusações (nunca efetivamente comprovadas) de delação de colegas ao Dops (principal órgão repressor do regime ditatorial em vigor no Brasil de 1964 a 1985), promovendo ao fim a redenção do cantor, Simonal é posto em cena com todas suas contradições. Ao carisma inegável, contrapõe-se em cena uma arrogância que, na vida real, contribuiu para que o artista fosse enterrado vivo na primeira metade dos anos 1970. Todo o segundo ato é impregnado das sombras que nublaram a alma de Simonal após o controvertido episódio que destruiu sua carreira. E, nesse ato, o protagonista Ícaro Silva tem um de seus melhores momentos no espetáculo ao puxar Cordão (1971), a música de Chico Buarque gravada por Simonal em álbum melancólico dessa fase crepuscular, Ninguém proíbe o amor (RCA, 1975), como um manifesto de resistência. A propósito, Ícaro Silva está bem como Simonal e eventualmente brilha como ator e cantor, mas sem impactar. Não há na sua personificação de Simonal o traço de incorporação observado nas performances dos atores que arrebataram o público ao protagonizarem recentes musicais sobre Tim Maia (1942 - 1998), Cazuza (1958 - 1990) e Cássia Eller (1962 - 2001), por exemplo. De todo modo, Ícaro vai crescendo ao longo das três horas do espetáculo. Desenvolto, acerta o tom da intervenção na plateia ao espremer o suco de Meu limão, meu limoeiro - o tema folclórico de origem nordestina temperado por Simonal com champignon - e ao dar voz a músicas emblemáticas da discografia do cantor, casos de Nem vem que não tem (Carlos Imperial, 1967) e Tributo a Martin Luther King (Wilson Simonal e Ronaldo Bôscoli, 1967), esta uma prova da consciência social de Simonal, ídolo que jamais aceitou o papel submisso e grato imposto aos negros famosos.

Mauro Ferreira disse...

Ícaro é o protagonista, mas, no primeiro terço do primeiro ato, chega a ser eclipsado em cena por Thelmo Fernandes, ator que marca bela presença no musical ao personificar com carisma o compositor, produtor e apresentador capixaba Carlos Imperial (1935 - 1992), a quem o texto confia a função de narrador da história de Simonal (a quem Imperial deu as primeiras oportunidades na carreira). O problema é que toda a parte dedicada a Imperial no início roqueiro do primeiro ato resulta demasiadamente longa. Números musicais como Rock around the clock (Max Freedman e James Myers, 1954) são perfeitamente dispensáveis no roteiro porque, a rigor, em nada contribuem para avançar na história de Simonal. Até porque, em certos momentos da primeira metade do primeiro ato, fica a impressão de que a figura central do musical é Imperial, e não Simonal. Por falar no roteiro, um dos números mais criativos - veículo para a exposição da versatilidade e do suingue de Simonal - é Lobo bobo (música creditada no programa da peça somente a Carlos Lyra, com omissão do nome de Ronaldo Bôscoli, parceiro de Lyra no tema). Nesse número, Ícaro alterna o tom de sua interpretação, se dividindo em questão de segundos entre o canto cheio de bossa do programa de TV O fino da bossa e a abordagem mais envenenada e pop do programa rival Jovem Guarda. Simonal tinha bossa e tinha também soul. Como cantor, Ícaro Silva consegue evocar em cena o suingue do artista quando interpreta músicas como Balanço Zona Sul (1963), música de autoria de Tito Madi desatentamente creditada a Simonal no programa do espetáculo. Como diretor, Pedro Brício surpreende a plateia ao projetar em telão a imagem de um carro condizente com o Carango do título desta parceria de Imperial com Nonato Buzar (1932 - 2014), compositor maranhense associado à Pilantragem, o movimento arquitetado por Imperial para alavancar o sucesso de Simonal na segunda metade dos anos 1960. Como diretor musical, autor dos arranjos criados com Max de Castro (filho de Simonal), Alexandre Elias acerta porque não inventa moda. Dá para identificar em Sá Marina (Tibério Gaspar e Nonato Buzar, 1968) - número que retrata no musical a passagem de Simonal pelo palco do Olympia de Paris em 1968 - a pulsação do imbatível arranjo original desse grande sucesso do cantor. No segundo ato, mais conciso, a dramaturgia entra em cena através de diálogos que retratam os desajustes de Simonal com a mulher Tereza (papel de Gabriela Carneiro da Cunha), com a polícia, com os todos-poderosos da TV Globo e com o mundo de forma geral. É a fase em que o artista se deixa anestesiar pela bebida. Mas, como manda a receita dos musicais do gênero, o final tem que ser para cima. Uma redenção além-túmulo - incoerente com o tom realista do texto - prepara o clima para o gran finale com medley de sucessos de Wilson Simonal, o cantor que fez o povo inteiro cantar. Mas que foi esquecido por esse mesmo povo ao dar o passo em falso - a prensa através de agentes Dops em contador do qual suspeitava de roubo em sua empresa - que lhe custou o sucesso e, de certa forma, a vida. S'imbora honra sua memória ao recontar sua história.

Denilson Santos disse...

Nossa... quantos erros no programa do espetáculo.
Acho isso uma lástima, ainda mais quando se trata de um espetáculo que teoricamente deveria ter um teor histórico.
Abração,
Denilson

Mauro Ferreira disse...

Concordo, Denilson. Esses erros, infelizmente, estão se tornando comuns. No programa do show 'Abraçar e agradecer', de Maria Bethânia, a música 'Tatuagem' é creditada somente a Chico Buarque. Esqueceram do Ruy Guerra. Abs, obrigado, MauroF