Título: Sobre crianças, quadris, pesadelos e lições de casa
Artista: Emicida
Gravadora: Laboratório Fantasma / Sony Music
Cotação: * * * * 1/2
♪ A africanidade do coeso segundo álbum de Emicida - gravado em rota intercontinental que incluiu passagens pelas cidades de Luanda (Angola, África), Praia (Cabo Verde, África) e São Paulo (SP, Brasil) - reside menos na sonoridade e mais no orgulho negro que conecta pretos de lá e de cá, embora o disco tenha sido formatado com as adesões de músicos africanos como o guitarrista Kaku Alves (de Cabo Verde), o baterista Ndu Carlos e o percussionista João Morgado (ambos de Angola). Do ponto de vista musical, Sobre crianças, quadris, pesadelos e lições de casa soa ligeiramente menos surpreendente do que seu antecessor O glorioso retorno de quem nunca esteve aqui (Laboratório Fantasma, 2013). Mas é um álbum mais focado - e o foco recai sobretudo nas questões raciais e nas diferenças socais embutidas numa sociedade que nega o preconceito e se acomoda com a miséria alheia. De cabeça erguida, o rapper paulistano aguça a consciência da raça negra entre as fúrias e as doçuras de repertório inédito e autoral formatado entre África - explicitamente evocada no canto solitário da africana Neusa Semedo em Sodade, tema da própria Semedo (líder das Batucadeiras do Terrero dos Órgãos) - e Brasil com produção de Xuxa Levy e patrocínio obtido no projeto Natura musical. A doçura de Amoras (Emicida e Xuxa Levy) - canção que relaciona a fruta à beleza das crianças negras - se alinha com o canto suave de Vanessa da Mata em Passarinhos (Emicida e Xuxa Levy), canção que se avizinha da praia do reggae para falar de dois pombinhos apaixonados à procura de teto na selva das cidades, e com a sensualidade afro de Baiana (Emicida e DJ Dhu), tema que exalta a Bahia negra e uma negra baiana (alvo da paixão do narrador da composição) para reiterar a força e o orgulho da raça. O refrão tem a voz discreta, mas assertiva, de Caetano Veloso. Há ainda a pegada pop romântica de Madagascar (Emicida e Xuxa Levy), rap levemente embebido em soul. Mas nem tudo é doçura. Emicida também pesa a mão e o discurso no compasso do rap mais tenso, ritmo que dá o tom furioso de Boa esperança (Emicida e Nave) - tema em que o rapper convidado J. Ghetto ajuda o anfitrião a pôr para fora todo o ódio represado nos guetos - e de 8 (Emicida, Rafael Tudesco, Xuxa Levy e DJ Nyack), rap que versa sobre o duro cotidiano dos operários nacionais, assunto abordado, sob outra ótica, em Trabalhadores do Brasil, (Marcelino Freire) poema contra o racismo dirigido aos brancos safados que veem negros pobres como escravos. O poema é recitado por seu autor, o pernambucano Marcelino Freire. Ao falar da rotina cruel dos trabalhadores brasileiros, 8 ecoa de forma geral o que a pungente Mãe (Emicida, DJ Duh, Renan Inquérito e Dona Jacira), faixa que abre o álbum, narra de forma particular ao contar a saga da mãe de Emicida para criar três filhos sozinha, sem a presença masculina do pai de seus meninos. A intervenção ao fim da faixa da própria personagem-título, Dona Jacira, valoriza o tema e mostra que, no peito de Emicida, também bate um coração grato pelas conquistas da vida e pela luta da mãe. Mas a chapa está quente, sobretudo dentro dos guetos, nas quebradas. Por isso, um samba tenso e quase sem balanço, como Chapa (Emicida e Xuxa Levy), encontra espaço neste disco pautado pelo contraste de fúrias e doçuras. Em Casa (Emicida, Xuxa Levy e Ogi), tal contraste vem da leveza das vozes do coro infantil com a dureza do discurso. Samba afro de suingue conduzido pelo baixo de Mayó Bass, Mufete (Emicida e Xuxa Levy) saúda locais de Angola e Cabo Verde sem deixar de atentar para o fato de que a África é vista, aos olhos do mundo ocidental, como um país genérico, sem especificidades. Já Mandume (Emicida, Rafael Tudesco, Drik Barbosa, Rico Dalasam, Amiri, Raphão Alaafin e Muz) põe em cena nomes emergentes do universo do hip hop do Brasil e da África, como Drik Barbosa e Rico Dalasam, para ecoar discurso contra a invisibilidade do povo negro do gueto aos olhos da elite branca brasileira. Com mais de oito minutos, o rap embute africanidade na batida e rancor no discurso. No fim, Salve black (Estilo livre) (Emicida e Xuxa Levy) volta a amenizar o tom do disco - idealizado por Emicida com Evandro Fióti e Renata Almeida - com um toque de samba, um pouco de soul e muito de rap. Grato às conexões africanas, o discurso prega união entre os rappers do universo do hip hop nativo. Enfim, Sobre crianças, quadris, pesadelos e lições de casa bisa a quase perfeição do antecessor O glorioso retorno de quem nunca esteve aqui, consolidando o discurso, a voz e a presença de Leandro Roque de Oliveira - vulgo Emicida - na fragmentada cena musical nativa. Axé!
10 comentários:
♪ A africanidade do coeso segundo álbum de Emicida - gravado em rota intercontinental que incluiu passagens pelas cidades de Luanda (Angola, África), Praia (Cabo Verde, África) e São Paulo (SP, Brasil) - reside menos na sonoridade e mais no orgulho negro que conecta pretos de lá e de cá, embora o disco tenha sido formatado com as adesões de músicos africanos como o guitarrista Kaku Alves (de Cabo Verde), o baterista Ndu Carlos e o percussionista João Morgado (ambos de Angola). Do ponto de vista musical, Sobre crianças, quadris, pesadelos e lições de casa soa ligeiramente menos surpreendente do que seu antecessor O glorioso retorno de quem nunca esteve aqui (Laboratório Fantasma, 2013). Mas é um álbum mais focado - e o foco recai sobretudo nas questões raciais e nas diferenças socais embutidas numa sociedade que nega o preconceito e se acomoda com a miséria alheia. De cabeça erguida, o rapper paulistano aguça a consciência da raça negra entre as fúrias e as doçuras de repertório inédito e autoral formatado entre África - explicitamente evocada no canto solitário da africana Neusa Semedo em Sodade, tema da própria Semedo (líder das Batucadeiras do Terrero dos Órgãos) - e Brasil com produção de Xuxa Levy e patrocínio obtido no projeto Natura musical. A doçura de Amoras (Emicida e Xuxa Levy) - canção que correlaciona a fruta com a beleza das crianças negras - se alinha com a suavidade de Passarinhos (Emicida e Xuxa Levy), canção que se avizinha da praia do reggae para falar de dois pombinhos apaixonados à procura de um teto na selva das cidades, e com a sensualidade afro de Baiana (Emicida e DJ Dhu), tema que exalta a Bahia negra e uma negra baiana (alvo da paixão do narrador da composição) para reiterar a força e o orgulho da raça. O refrão tem a voz discreta, mas assertiva, de Caetano Veloso. Há ainda a pegada pop romântica de Madagascar (Emicida e Xuxa Levy), rap levemente embebido em soul. Mas nem tudo é doçura. Emicida também pesa a mão e o discurso no compasso do rap mais tenso, ritmo que dá o tom furioso de Boa esperança (Emicida e Nave) - tema em que o rapper convidado J. Ghetto ajuda o anfitrião a pôr para fora todo o ódio represado nos guetos - e de 8 (Emicida, Rafael Tudesco, Xuxa Levy e DJ Nyack), rap que versa sobre o duro cotidiano dos operários nacionais, assunto abordado, sob outra ótica, em Trabalhadores do Brasil, (Marcelino Freire) poema contra o racismo dirigido aos brancos safados que veem negros pobres como escravos. O poema é recitado por seu autor, o pernambucano Marcelino Freire.
Ao falar da rotina cruel dos trabalhadores brasileiros, 8 ecoa de forma geral o que a pungente Mãe (Emicida, DJ Duh, Renan Inquérito e Dona Jacira), faixa que abre o álbum, narra de forma particular ao contar a saga da mãe de Emicida para criar três filhos sozinha, sem a presença masculina do pai de seus meninos. A intervenção ao fim da faixa da própria personagem-título, Dona Jacira, valoriza o tema e mostra que, no peito de Emicida, também bate um coração grato pelas conquistas da vida e pela luta da mãe. Mas a chapa está quente, sobretudo dentro dos guetos, nas quebradas. Por isso, um samba tenso e quase sem balanço, como Chapa (Emicida e Xuxa Levy), encontra espaço neste disco pautado pelo contraste de fúrias e doçuras. Em Casa (Emicida, Xuxa Levy e Ogi), tal contraste vem da leveza das vozes do coro infantil com a dureza do discurso. Samba afro de suingue conduzido pelo baixo de Mayó Bass, Mufete (Emicida e Xuxa Levy) saúda locais de Angola e Cabo Verde sem deixar de atentar para o fato de que a África é vista, aos olhos do mundo ocidental, como um país genérico, sem especificidades. Já Mandume (Emicida, Rafael Tudesco, Drik Barbosa, Rico Dalasam, Amiri, Raphão Alaafin e Muz) põe em cena nomes emergentes do universo do hip hop do Brasil e da África, como Drik Barbosa e Rico Dalasam, para ecoar discurso contra a invisibilidade do povo negro do gueto aos olhos da elite branca brasileira. Com mais de oito minutos, o rap embute africanidade na batida e rancor no discurso. No fim, Salve black (Estilo livre) (Emicida e Xuxa Levy) volta a amenizar o tom do disco - idealizado por Emicida com Evandro Fióti e Renata Almeida - com um toque de samba, um pouco de soul e muito de rap. Grato às conexões africanas, o discurso prega união entre os rappers do universo do hip hop nativo. Enfim, Sobre crianças, quadris, pesadelos e lições de casa roça a quase perfeição do antecessor O glorioso retorno de quem nunca esteve aqui, consolidando o discurso, a voz e a presença de Leandro Roque de Oliveira - vulgo Emicida - na fragmentada cena musical nativa. Axé!
Esse álbum dele é muito bom, mas não tanto quanto seu primeiro disco... Adorei "Passarinhos", "Mãe" e "Baiana".
Vamos ouvir o álbum ... gostei da resenha
Mauro, acho q passou desapercebida a participaçao da Vanessa da Matta na faixa Passarinhos. E discreta MAs EU gostei dos vocais dela. Abs
Me parece um disco interesse - denso e urgente como a realidade que vivemos.
Certamente, um dos melhores lançamentos do ano.
Claudio Paes, grato pela lembrança. Já tinha falado da participação de Vanessa em outros post. De todo modo, cabia menção à cantora na resenha. Abs, MauroF
Uma musicalização do discurso do ELES contra NÓS.
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