Mauro Ferreira no G1

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segunda-feira, 17 de agosto de 2015

Emicida aguça a consciência da raça entre fúrias e doçura do segundo álbum

Resenha de CD
Título: Sobre crianças, quadris, pesadelos e lições de casa
Artista: Emicida
Gravadora: Laboratório Fantasma / Sony Music
Cotação: * * * * 1/2

A africanidade do coeso segundo álbum de Emicida - gravado em rota intercontinental que incluiu passagens pelas cidades de Luanda (Angola, África), Praia (Cabo Verde, África) e São Paulo (SP, Brasil) - reside menos na sonoridade e mais no orgulho negro que conecta pretos de lá e de cá, embora o disco tenha sido formatado com as adesões de músicos africanos como o guitarrista Kaku Alves (de Cabo Verde), o baterista Ndu Carlos e o percussionista João Morgado (ambos de Angola). Do ponto de vista musical, Sobre crianças, quadris, pesadelos e lições de casa soa ligeiramente menos surpreendente do que seu antecessor O glorioso retorno de quem nunca esteve aqui (Laboratório Fantasma, 2013). Mas é um álbum mais focado - e o foco recai sobretudo nas questões raciais e nas diferenças socais embutidas numa sociedade que nega o preconceito e se acomoda com a miséria alheia. De cabeça erguida, o rapper paulistano aguça a consciência da raça negra entre as fúrias e as doçuras de repertório inédito e autoral formatado entre África - explicitamente evocada no canto solitário da africana Neusa Semedo em Sodade, tema da própria Semedo (líder das Batucadeiras do Terrero dos Órgãos) - e Brasil com produção de Xuxa Levy e patrocínio obtido no projeto Natura musical. A doçura de Amoras (Emicida e Xuxa Levy) - canção que relaciona a fruta à beleza das crianças negras - se alinha com o canto suave de Vanessa da Mata em Passarinhos (Emicida e Xuxa Levy), canção que se avizinha da praia do reggae para falar de dois pombinhos apaixonados à procura de teto na selva das cidades, e com a sensualidade afro de Baiana (Emicida e DJ Dhu), tema que exalta a Bahia negra e uma negra baiana (alvo da paixão do narrador da composição) para reiterar a força e o orgulho da raça. O refrão tem a voz discreta, mas assertiva, de Caetano Veloso. Há ainda a pegada pop romântica de Madagascar (Emicida e Xuxa Levy), rap levemente embebido em soul. Mas nem tudo é doçura. Emicida também pesa a mão e o discurso no compasso do rap mais tenso, ritmo que dá o tom furioso de Boa esperança (Emicida e Nave) - tema em que o rapper convidado J. Ghetto ajuda o anfitrião a pôr para fora todo o ódio represado nos guetos - e de 8 (Emicida, Rafael Tudesco, Xuxa Levy e DJ Nyack), rap que versa sobre o duro cotidiano dos operários nacionais, assunto abordado, sob outra ótica, em Trabalhadores do Brasil, (Marcelino Freire) poema contra o racismo dirigido aos brancos safados que veem negros pobres como escravos. O poema é recitado por seu autor, o pernambucano Marcelino Freire. Ao falar da rotina cruel dos trabalhadores brasileiros, 8 ecoa de forma geral o que a pungente Mãe (Emicida, DJ Duh, Renan Inquérito e Dona Jacira), faixa que abre o álbum, narra de forma particular ao contar a saga da mãe de Emicida para criar três filhos sozinha, sem a presença masculina do pai de seus meninos. A intervenção ao fim da faixa da própria personagem-título, Dona Jacira, valoriza o tema e mostra que, no peito de Emicida, também bate um coração grato pelas conquistas da vida e pela luta da mãe. Mas a chapa está quente, sobretudo dentro dos guetos, nas quebradas. Por isso, um samba tenso e quase sem balanço, como Chapa (Emicida e Xuxa Levy), encontra espaço neste disco pautado pelo contraste de fúrias e doçuras. Em Casa (Emicida, Xuxa Levy e Ogi), tal contraste vem da leveza das vozes do coro infantil com a dureza do discurso. Samba afro de suingue conduzido pelo baixo de Mayó Bass, Mufete (Emicida e Xuxa Levy) saúda locais de Angola e Cabo Verde sem deixar de atentar para o fato de que a África é vista, aos olhos do mundo ocidental, como um país genérico, sem especificidades. Já Mandume (Emicida, Rafael Tudesco, Drik Barbosa, Rico Dalasam, Amiri, Raphão Alaafin e Muz) põe em cena nomes emergentes do universo do hip hop do Brasil e da África, como Drik Barbosa e Rico Dalasam, para ecoar discurso contra a invisibilidade do povo negro do gueto aos olhos da elite branca brasileira. Com mais de oito minutos, o rap embute africanidade na batida e rancor no discurso. No fim, Salve black (Estilo livre) (Emicida e Xuxa Levy) volta a amenizar o tom do disco - idealizado por Emicida com Evandro Fióti e Renata Almeida - com um toque de samba, um pouco de soul e muito de rap. Grato às conexões africanas, o discurso prega união entre os rappers do universo do hip hop nativo. Enfim, Sobre crianças, quadris, pesadelos e lições de casa bisa a quase perfeição do antecessor O glorioso retorno de quem nunca esteve aqui, consolidando o discurso, a voz e a presença de Leandro Roque de Oliveira - vulgo Emicida - na fragmentada cena musical nativa. Axé!

10 comentários:

Mauro Ferreira disse...

♪ A africanidade do coeso segundo álbum de Emicida - gravado em rota intercontinental que incluiu passagens pelas cidades de Luanda (Angola, África), Praia (Cabo Verde, África) e São Paulo (SP, Brasil) - reside menos na sonoridade e mais no orgulho negro que conecta pretos de lá e de cá, embora o disco tenha sido formatado com as adesões de músicos africanos como o guitarrista Kaku Alves (de Cabo Verde), o baterista Ndu Carlos e o percussionista João Morgado (ambos de Angola). Do ponto de vista musical, Sobre crianças, quadris, pesadelos e lições de casa soa ligeiramente menos surpreendente do que seu antecessor O glorioso retorno de quem nunca esteve aqui (Laboratório Fantasma, 2013). Mas é um álbum mais focado - e o foco recai sobretudo nas questões raciais e nas diferenças socais embutidas numa sociedade que nega o preconceito e se acomoda com a miséria alheia. De cabeça erguida, o rapper paulistano aguça a consciência da raça negra entre as fúrias e as doçuras de repertório inédito e autoral formatado entre África - explicitamente evocada no canto solitário da africana Neusa Semedo em Sodade, tema da própria Semedo (líder das Batucadeiras do Terrero dos Órgãos) - e Brasil com produção de Xuxa Levy e patrocínio obtido no projeto Natura musical. A doçura de Amoras (Emicida e Xuxa Levy) - canção que correlaciona a fruta com a beleza das crianças negras - se alinha com a suavidade de Passarinhos (Emicida e Xuxa Levy), canção que se avizinha da praia do reggae para falar de dois pombinhos apaixonados à procura de um teto na selva das cidades, e com a sensualidade afro de Baiana (Emicida e DJ Dhu), tema que exalta a Bahia negra e uma negra baiana (alvo da paixão do narrador da composição) para reiterar a força e o orgulho da raça. O refrão tem a voz discreta, mas assertiva, de Caetano Veloso. Há ainda a pegada pop romântica de Madagascar (Emicida e Xuxa Levy), rap levemente embebido em soul. Mas nem tudo é doçura. Emicida também pesa a mão e o discurso no compasso do rap mais tenso, ritmo que dá o tom furioso de Boa esperança (Emicida e Nave) - tema em que o rapper convidado J. Ghetto ajuda o anfitrião a pôr para fora todo o ódio represado nos guetos - e de 8 (Emicida, Rafael Tudesco, Xuxa Levy e DJ Nyack), rap que versa sobre o duro cotidiano dos operários nacionais, assunto abordado, sob outra ótica, em Trabalhadores do Brasil, (Marcelino Freire) poema contra o racismo dirigido aos brancos safados que veem negros pobres como escravos. O poema é recitado por seu autor, o pernambucano Marcelino Freire.

Mauro Ferreira disse...

Ao falar da rotina cruel dos trabalhadores brasileiros, 8 ecoa de forma geral o que a pungente Mãe (Emicida, DJ Duh, Renan Inquérito e Dona Jacira), faixa que abre o álbum, narra de forma particular ao contar a saga da mãe de Emicida para criar três filhos sozinha, sem a presença masculina do pai de seus meninos. A intervenção ao fim da faixa da própria personagem-título, Dona Jacira, valoriza o tema e mostra que, no peito de Emicida, também bate um coração grato pelas conquistas da vida e pela luta da mãe. Mas a chapa está quente, sobretudo dentro dos guetos, nas quebradas. Por isso, um samba tenso e quase sem balanço, como Chapa (Emicida e Xuxa Levy), encontra espaço neste disco pautado pelo contraste de fúrias e doçuras. Em Casa (Emicida, Xuxa Levy e Ogi), tal contraste vem da leveza das vozes do coro infantil com a dureza do discurso. Samba afro de suingue conduzido pelo baixo de Mayó Bass, Mufete (Emicida e Xuxa Levy) saúda locais de Angola e Cabo Verde sem deixar de atentar para o fato de que a África é vista, aos olhos do mundo ocidental, como um país genérico, sem especificidades. Já Mandume (Emicida, Rafael Tudesco, Drik Barbosa, Rico Dalasam, Amiri, Raphão Alaafin e Muz) põe em cena nomes emergentes do universo do hip hop do Brasil e da África, como Drik Barbosa e Rico Dalasam, para ecoar discurso contra a invisibilidade do povo negro do gueto aos olhos da elite branca brasileira. Com mais de oito minutos, o rap embute africanidade na batida e rancor no discurso. No fim, Salve black (Estilo livre) (Emicida e Xuxa Levy) volta a amenizar o tom do disco - idealizado por Emicida com Evandro Fióti e Renata Almeida - com um toque de samba, um pouco de soul e muito de rap. Grato às conexões africanas, o discurso prega união entre os rappers do universo do hip hop nativo. Enfim, Sobre crianças, quadris, pesadelos e lições de casa roça a quase perfeição do antecessor O glorioso retorno de quem nunca esteve aqui, consolidando o discurso, a voz e a presença de Leandro Roque de Oliveira - vulgo Emicida - na fragmentada cena musical nativa. Axé!

Rafael disse...

Esse álbum dele é muito bom, mas não tanto quanto seu primeiro disco... Adorei "Passarinhos", "Mãe" e "Baiana".

Unknown disse...

Vamos ouvir o álbum ... gostei da resenha

claudiopaes disse...

Mauro, acho q passou desapercebida a participaçao da Vanessa da Matta na faixa Passarinhos. E discreta MAs EU gostei dos vocais dela. Abs

Henrique disse...

Me parece um disco interesse - denso e urgente como a realidade que vivemos.

Patrick Moraes disse...

Certamente, um dos melhores lançamentos do ano.

Mauro Ferreira disse...

Claudio Paes, grato pela lembrança. Já tinha falado da participação de Vanessa em outros post. De todo modo, cabia menção à cantora na resenha. Abs, MauroF

ADEMAR AMANCIO disse...

Uma musicalização do discurso do ELES contra NÓS.

noca disse...
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