terça-feira, 13 de outubro de 2015

'A mulher do fim do mundo' é a lágrima de Elza no esquema do samba 'noise'

Resenha de CD
Título: A mulher do fim do mundo
Artista: Elza Soares
Gravadora: Circus
Cotação: * * * * *
♪ Disco disponível para audição no portal do projeto Natural Musical

Elza Soares é dura na queda. É mulher sobrevivente de um mundo onde a tristeza não tem fim, como já sentenciou o samba de Tom & Vinicius. Primeiro álbum de repertório inteiramente inédito na discografia da cantora carioca, A mulher do fim do mundo representa mais uma lágrima negra que escorre sobre a pele escura desta resistente habitante do planeta fome, como a própria Elza jogou na cara do apresentador Ary Barroso (1903 - 1964) quando era ainda caloura com voz, mas sem vez, no mundo da música. Lágrima que cai na cadência bonita do samba, mas no esquema noise da turma de músicos paulistanos que pariram o disco produzido por Guilherme Kastrup, sob a direção artística de Romulo Fróes e Celso Sim, e lançado neste mês de outubro de 2015. Símbolo da mulher que apanhou muito da vida punk sem jamais dar sua cara à tapa, a cuíca chora e geme no pancadão do rock'n'roll. Mas nem há, a rigor, cuíca nos arranjos dos sambas de espírito roqueiro que pautam o disco valorizado pela bossa negra de uma voz rouca que desafia o tempo e a vida. Mas há o cavaco de um sambista que toca também guitarra - Rodrigo Campos - e há a guitarra de Kiko Dinucci, pontuando distorcidos temas incandescentes como Luz vermelha, parceria de Dinucci com Clima. Cheio de som e fúria, A mulher do fim do mundo encara o apocalipse e versa sobre universo em desencanto sem abrir mão da poesia. É um poema do modernista paulistano Oswald de Andrade (1890 - 1954) - Coração do mar, musicado por José Miguel Wisnik - que abre o disco a capella, evocando o navio negreiro que transportava homens e mulheres de peles pretas como esta cantora de declarados 78 anos e presumíveis 85. Em essência, A mulher do fim do mundo é mais um ato de resistência de Elza Soares. "Me deixem cantar até o fim", exige no samba-título Mulher do fim do mundo (Romulo Fróes e Alice Coutinho). A chapa está quente, o barulho é feio e distorcido, mas Elza é fera ferida que não nega a força da raça e vira leoa para se defender da violência doméstica contra a mulher, assunto do samba-punk Maria da Vila Matilde (Douglas Germano), single que revelou a virulência deste disco que já se impõe como o mais forte do ano. A mulher do fim do mundo está para este ano de 2015 como Encarnado (Independente, 2014) - o impactante álbum solo de Juçara Marçal - esteve para o ano passado. Eterna fênix nas cinzas da vida, Elza é a leoa que também se transforma na loba voraz e sedenta de sexo personificada na explícita Pra fuder (Kiko Dinucci), faixa aquecida com os metais em brasa do Bixiga 70, orquestrados por Thiago França em clima de gafieira punk. O mesmo naipe de metais reaparece em Benedita (Celso Sim, Pepê Mata Machado, Joana Barossi e Fernanda Diamant), mas já arranjados pelo próprio grupo. Crônica da violência punk das periferias, Benedita perfila sem meias-palavras a personagem-título, travesti cujo fim no disco é fazer a mulher Elza dar voz a um submundo de drogas, crimes e dribles para escapar do tiroteio cotidiano. Também com os metais do Bixiga 70 e a voz de seu compositor Rodrigo Campos, Firmeza?! é diálogo cortante que versa sobre as urgências da apressada vida cotidiana, evocando Sinal fechado (Paulinho da Viola, 1969), mas sob o prisma dos dias turbulentos de hoje. O tempo de Elza Soares é hoje. Valente, ela vê a cara da morte, mas sai viva, abrindo a tampa do caixão no passo passional da macabra Dança (Cacá Machado e Romulo Fróes). Com o toque oriental da rabeca de Thomas Rohrer, O canal (Rodrigo Campos) também cavuca o chão de sal do qual saem almas perdidas. Mas o corpo e a voz de Elza Soares parecem caminhar sozinhos, pairando acima do tom etéreo de Solto (Marcelo Cabral e Clima), composição de versos concretistas que se afinam com os traços da criativa capa do disco, assinada pela designer Elaine Ramos. Mas Elza não está sozinha. Leva com ela sua mãe que já se foi, como reitera em Comigo (Romulo Fróes e Alberto Tassinari), faixa que encerra este disco em que, após o fecho, a voz de Elza ainda se faz ouvir além do fim do mundo. Em suma, A mulher do fim do mundo é acertado passo torto desta cantora que sempre foi gauche na vida. Punk por natureza, ela legitima seu encontro antológico com o núcleo de músicos paulistanos que fizeram a artista dar um passo além em discografia que já parecia estagnada desde que Elza se jogou na pista eletrônica do álbum Vivo feliz (Reco-Head Records / Tratore, 2003). Como tristeza não tem fim, e felicidade, sim, Elza Soares renasce com disco pautado por samba roqueiro nascido da dor que impulsiona sua vida punk. A mulher do fim do mundo é a lágrima e a bossa negras da mulher da pele preta, guerreira ainda dura na queda que dá rasteiras na vida desde que o samba é samba.

25 comentários:

  1. ♪ Elza Soares é dura na queda. É mulher sobrevivente de um mundo onde a tristeza não tem fim, como já sentenciou o samba de Tom & Vinicius. Primeiro álbum de repertório inteiramente inédito na discografia da cantora carioca, A mulher do fim do mundo representa mais uma lágrima negra que escorre sobre a pele escura desta resistente habitante do planeta fome, como a própria Elza jogou na cara do apresentador Ary Barroso (1903 - 1964) quando era ainda caloura com voz, mas sem vez, no mundo da música. Lágrima que cai na cadência bonita do samba, mas no esquema noise da turma de músicos paulistanos que pariram o disco produzido por Guilherme Kastrup, sob a direção artística de Romulo Fróes e Celso Sim, e lançado neste mês de outubro de 2015. Símbolo da mulher que apanhou muito da vida punk sem jamais dar sua cara à tapa, a cuíca chora e geme no pancadão do rock'n'roll. Mas nem há, a rigor, cuíca nos arranjos dos sambas de espírito roqueiro que pautam o disco valorizado pela bossa negra de uma voz rouca que desafia o tempo e a vida. Mas há o cavaco de um sambista que toca também guitarra - Rodrigo Campos - e há a guitarra de Kiko Dinucci, pontuando distorcidos temas incandescentes como Luz vermelha, parceria de Dinucci com Clima.

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  2. Cheio de som e fúria, A mulher do fim do mundo encara o apocalipse e versa sobre universo em desencanto sem abrir mão da poesia. É um poema do modernista paulistano Oswald de Andrade (1890 - 1954) - Coração do mar, musicado por José Miguel Wisnik - que abre o disco a capella, evocando o navio negreiro que transportava homens e mulheres de peles pretas como esta cantora de declarados 78 anos e presumíveis 85. Em essência, A mulher do fim do mundo é mais um ato de resistência de Elza Soares. "Me deixem cantar até o fim", exige no samba-título Mulher do fim do mundo (Romulo Fróes e Alice Coutinho). A chapa está quente, o barulho é feio e distorcido, mas Elza é fera ferida que não nega a força da raça e vira leoa para se defender da violência doméstica contra a mulher, assunto do samba-punk Maria da Vila Matilde (Douglas Germano), single que revelou a virulência deste disco que já se impõe como o mais forte do ano. A mulher do fim do mundo está para este ano de 2015 como Encarnado (Independente, 2014) - o impactante álbum solo de Juçara Marçal - esteve para o ano passado. Eterna fênix nas cinzas da vida, Elza é a leoa que também se transforma na loba voraz e sedenta de sexo personificada na explícita Pra fuder (Kiko Dinucci), faixa aquecida com os metais em brasa do Bixiga 70, orquestrados por Thiago França em clima de gafieira punk. O mesmo naipe de metais reaparece em Benedita (Celso Sim, Pepê Mata Machado, Joana Barossi e Fernanda Diamant), mas já arranjados pelo próprio grupo. Crônica da violência punk das periferias, Benedita perfila sem meias-palavras a personagem-título, travesti cujo fim no disco é fazer a mulher Elza dar voz a um submundo de drogas, crimes e dribles para escapar do tiroteio cotidiano. Também com os metais do Bixiga 70 e a voz de seu compositor Rodrigo Campos, Firmeza?! é diálogo cortante que versa sobre as urgências da apressada vida cotidiana, evocando Sinal fechado (Paulinho da Viola, 1969), mas sob o prisma dos dias turbulentos de hoje. O tempo de Elza Soares é hoje. Valente, ela vê a cara da morte, mas sai viva, abrindo a tampa do caixão no passo passional da macabra Dança (Cacá Machado e Romulo Fróes). Com o toque oriental da rabeca de Thomas Rohrer, O canal (Rodrigo Campos) também cavuca o chão de sal do qual saem almas perdidas. Mas o corpo e a voz de Elza Soares parecem caminhar sozinhos, pairando acima do tom etéreo de Solto (Marcelo Cabral e Clima), composição de versos concretistas que se afinam com os traços da criativa capa do disco, assinada pela designer Elaine Ramos. Mas Elza não está sozinha. Leva com ela sua mãe que já se foi, como reitera em Comigo (Romulo Fróes e Alberto Tassinari), faixa que encerra este disco em que, após o fecho, a voz de Elza ainda se faz ouvir além do fim do mundo. Em suma, A mulher do fim do mundo é acertado passo torto desta cantora que sempre foi gauche na vida. Punk por natureza, ela legitima seu encontro antológico com o núcleo de músicos paulistanos que fizeram a artista dar um passo além em discografia que já parecia estagnada desde que Elza se jogou na pista eletrônica do álbum Vivo feliz (Reco-Head Records / Tratore, 2003). Como tristeza não tem fim, e felicidade, sim, Elza Soares renasce com disco pautado por samba roqueiro nascido da dor que impulsiona sua vida punk. A mulher do fim do mundo é a lágrima e a bossa negras da mulher da pele preta, guerreira ainda dura na queda que dá rasteiras na vida desde que o samba é samba.

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  3. Não gostei das 2 canções que foram liberadas para audição anteriormente... Mas as outras compensam o álbum... Gostei do disco, mas gostaria de ver o tributo da Elza cantando Lupicínio... Isso seria bálsamo para os meus ouvidos... Não acho que o caso desse álbum seja 5 estrelas, mas 3 ele leva...

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  4. Não gostei das 2 canções que foram liberadas para audição anteriormente... Mas as outras compensam o álbum... Gostei do disco, mas gostaria de ver o tributo da Elza cantando Lupicínio... Isso seria bálsamo para os meus ouvidos... Não acho que o caso desse álbum seja 5 estrelas, mas 3 ele leva...

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  5. E impressionante a unanimidade das criticas em torno deste álbum. Confesso q foi um impacto a primeira audição. A voz continua ali forte e me fez voltar a década de 90 quando assiti a um show dela com muito rock. Cantando Djavan, Cazuza, entre outros. Ansioso para ver este show. Parabéns pela sua resenha. Abraço

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  6. Merecedor de 5 estrelas! Que esse disco dê ânimo àqueles que acomodam-se!

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  7. O cd é primoroso Mauro merecidamente vc deu 5 estrelas pra este,só acho q a discografia da Elza até podia estar estagnada como vc disse mas a carreira dela nunca esteve,abraços!

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  8. Concordo, Fred. Por isso, me referi especificamente à discografia. Abs, MauroF

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  9. Vou correndo ouvir! Tão bom ver Elzas, Miltons, Elbas (não me canso do último disco dela)... ainda produzindo coisa nova - não só por fazer algo, mas por fazer bem feito.

    Obs.: o servidor não tá "subindo" alguns comentários pelo celular :/
    Obs.: Vai sair crítica do Delírio da roberta?

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  10. O disco está em grande rotação aqui em casa. Me interessam muito os últimos títulos lançados pela Elza, 'Do cóccix até o pescoço' e 'Vivo Feliz' e este 'A mulher do fim do mundo' parece chegar no ponto exato, ou melhor dizendo, na ferida. Com tantos anos de carreira, Elza é também na música brasileira uma resistente, não virou queridinha de nenhum compositor e sempre teve dificuldade de conseguir canções fortes que estivessem a altura do seu talento vocal. Por isso, sofreu altos e baixos na discografia. Ainda estou impactado com os versos da faixa-título, que pra mim é a música do ano até agora, onde ela clama que a deixem cantar até o fim. Este disco da Elza e o disco solo do Hélio Flanders foram as melhores surpresas de 2015.

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  11. Sim, Victor, a resenha de 'Delírio' vai ser postada hoje ou - no máximo - amanhã. abs, MauroF

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  12. Ouvindo melhor o disco, gostei do mesmo... Dou 4 estrelas pra ele, cinco já seria exagero...

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  13. Concordo Rafael M. É um disco bom, mas não é 5 estrelas na minha cotação. O disco não me surpreende nas temáticas fortes. Já esperava por isso vindo das pessoas com quem Elza gravou. A voz continua forte, os brados são verdadeiros, a temática é próxima da vida de Elza Soares, sem dúvida uma guerreira, mas 5 estrelas pra mim é pra álbum impecável, o que não é o caso. 5 estrelas com justiça eu daria pra "Do cóccix", a obra prima de Elza. Existe sempre certa exaltação de grupos, tendências e a vez é dos paulistanos, veremos quem serão os próximos...

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  14. Belíssimo texto Mauro! À altura deste arrepiante álbum lançado pela grande Elza Soares, estou aqui emocionado por ambos. Parabéns!

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  15. Elza é Elza...cheia de raiva e amor, lindo demais.....Num ano com grandes cantoras fortes e de atitude como Karina e Ava, com discos incríveis também diga-se de passagem...
    Elza arrebentou com um disco incrivel, forte e muito moderno 5 estrelas merecidas, eu dava 10

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  16. Lurian, álbum maravilhoso e que eu dou 5 estrelas com louvor é o novo álbum da Leny Andrade, o "Alegria de Viver". Aquele disco é sensacional... Cada classicão da música brasileira que se encontra nesse disco, é de arrepiar os cabelos... Se você ainda não ouviu o álbum, pode escutá-lo na Deezer no link abaixo:

    http://www.deezer.com/album/11288072

    Escute o disco, você não vai se arrepender do mesmo. ;-)

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  17. Tem o disco inteiro no YouTube pra quem quiser ouvir, pois mas tarde o farei estou ansioso

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  18. O cd de Elza é uma das maiores surpresas desse ano. Ágil, conciso, cheio de vigor e mostra que é possível se reinventar em uma carreira que sempre foi pautada pela alta qualidade. Pra Fuder e Maria da Vila Matilde são músicas deliciosas que ficam no repeat infinito.

    (p.s.: sem falar que essa capa é incrível. estou louco para ver o acabamento no cd físico.)

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  19. A capa no CD físico é um pouco diferente, o título fica no meio do Z e é escrito em prateado, dá um efeito muito legal já que o resto da embalagem é em digipack de papel cartão mais fosco. Não gosto muito desse tipo de embalagem, mas quando bem feito gera um efeito que acaba compensando o cuidado maior que a gente tem que ter na hora de guardar.
    O álbum é incrível e merece os elogios que tem recebido, Elza Soares continua surpreendendo de uma maneira muito moderna e ousada.

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  20. Você tem uma sensibilidade e um conhecimento ou uma cultura geral bem acima da média, digamos assim, para não ferir suscetibilidades de outros críticos musicais.E escreve muitíssimo bem.Seus recados são bem dadíssimos.Não por acaso é o meu crítico musical preferido.Aplausos "procê". Ela mereça por todos os motivos críticas elogiosas, pois arrisca, faz ARTE de altíssimo nível, provocativa...sem esquecer de que foi A CANTORA DO MILÊNIO. O Brasil é um país tão "bizarro", que as novidades, as originalidades, as ousadias, continuam com os "bons da antiga".Este trabalho aos 85 anos e Recanto da Gal( quando lançou já estava "pertim" dos setentinha rs), para ficar somente em dois exemplos, demonstram que idade (antes dos trinta ou quarenta), novidade ou modernidade não andam juntas, necessariamente e que nem tudo que é novo é bom ou artístico.Nota 5, sim!!! Elza é , certamente , das mais singulares, autênticas, personalíssimas, artísticas e desafinadoras do coros dos contentes das cantoras do Verdelindo.Nestes quesitos, e com sua potente/ afinada voz ÚNICA e inimitável... é A MAIOR. MaravilhELZA! FabulELZA!DivinELZA!

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  21. Desculpe a pressa...o correto é: "Ela merece".Abraço.

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  22. Que disco maravilhoso! !!!!!!! Não só é muito bom, como é também de arrepiar!!!!! Acho que é o melhor que ouvi esse ano, até agora.

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  23. Esse disco não merece cinco, mas seis estrelas! Melhor disco de 2015!

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  24. Disco perfeito! 5 estrelas, com louvor. Elza é Elza: insubstituível, magnífica, singular... mas plural na arte de encantar. Parabéns pela resenha, Mauro! De longe, você é o melhor crítico musical da atualidade. O meu predileto, inclusive.

    PS.: em relação ao show deste àlbum, que outras canções constam no repertório?

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