Título: Dois amigos, um século de música
Artistas: Caetano Veloso e Gilberto Gil (em foto de Rodrigo Goffredo)
Local: Metropolitan (Rio de Janeiro, RJ)
Data: 18 de outubro de 2015
Cotação: * * * * *
♪ O título do show Dois amigos, um século de música alude ao fato de Caetano Veloso e Gilberto Gil estarem completando e festejando juntos, neste ano de 2015, cinco décadas de suas respectivas carreiras. Duas carreiras afins, irmãs, que correm paralelas desde que os artistas extrapolaram as fronteiras da Bahia natal e ganharam exposição nacional a partir de 1965 com a gravação e edição de compactos pela gravadora RCA. A soma dos 50 anos de carreira de Caetano com os 50 de Gil daria "um século de música". Mas o título faz mais sentido quando a visão do show - cuja turnê de rota internacional, iniciada em 25 de junho em Amsterdam, chegou à cidade do Rio de Janeiro (RJ) no último fim de semana - mostra que, juntos no palco, a sós com seus respectivos violões e com o justo status de gênios da MPB, Caetano e Gil se irmanam na exposição fraterna de um século de música brasileira. Sim, embora a composição mais antiga do repertório seja o bolero cubano Tres palabras (Osvaldo Farrés), lançado em 1946 e ouvido no show na voz rouca de Gil, os cantores e compositores sintetizam um século de música brasileira nas vozes, nos violões e nas 30 músicas do roteiro. Desde que o samba é oficialmente samba, a partir de novembro de 1916, a música brasileira se expandiu em ramificações que, de uma certa forma, estão representadas no roteiro de Dois amigos, um século de música, show de sucesso massivo que tem lotado grandes casas das cidades por onde tem passado. Situado musicalmente entre Rio e Bahia, evocada já na abertura do show, quando em uníssono Caetano e Gil relembram em Back in Bahia (Gilberto Gil, 1972) o inventário existencial do exílio londrino, feito por Gil na volta ao Brasil, o roteiro abarca diversos afluentes da música brasileira. Se Coração vagabundo (Caetano Veloso, 1967) - que começa a bater com a habitual suavidade na voz de Gil para somente depois ser ouvido com seu compositor - é o eco ainda vívido do poder transformador da Bossa Nova, É luxo só (Ary Barroso e Luiz Peixoto, 1957) representa o requebrado brasileiro de antes da bossa do fundamental João Gilberto. E aí, nesse momento, Gil brilha provisoriamente mais do que Caetano em um "cai para lá, cai para cá" de sua voz e de seu violão que reiteram a espantosa musicalidade do preto que Caetano gostava antes mesmo de ser alguém na música. Antes da bossa de João, houve também o baião de Luiz Gonzaga (1912 - 1989), ídolo dos dois amigos, rei da musical nação nordestina, evocado com reverência na fogueira armada em São João Xangô menino (Caetano Veloso e Gilberto Gil, 1976). Depois da bossa de João, houve a Tropicália, o movimento pop de 1967 orquestrado por Caetano e Gil para derrubar os muros da música brasileira, redefinindo os conceitos de bom e mau gosto. O solo vocal de Caetano em Tropicália (Caetano Veloso, 1967) e o de Gil em Marginália II (Gilberto Gil e Torquato Neto, 1967) saúdam os poetas que desfolharam a bandeira entre pânicos e glórias. Única novidade do repertório, incorporada ao roteiro a partir da estreia do show em palcos brasileiros, As camélias do quilombo do Leblon - samba que se revela mais engenhoso e mais sedutor a cada audição, desfazendo a impressão inicial de ser composição meramente mediana - remete a tempos remotos de lutas pelo fim da escravidão. No fim do samba, quando percute o violão e emula a voz de um preto velho, Gil sintetiza toda a carga ancestral da negritude africana que pauta a música brasileira, sêmem que gerou tanto o samba-reggae - ritmo que sustenta o Olodum, grupo lembrado no show com seu hit Nossa gente (Avisa lá ) (Roque Carvalho, 1992) em número festivo em que os cantores alternam tons e timbres - quanto o rap não evidente no show, mas presente na obra dos dois amigos desde a parceria na composição de Haiti (Caetano Veloso e Gilberto Gil, 1993), ausência sentida do roteiro pautado por sucessos como Sampa (Caetano Veloso, 1978), tema cantado por Caetano e adornado por leves toques de percussão tirados por Gil de seu violão. A obviedade da inclusão de alguns hits cantados com avidez por um público mais conservador é redimida pela musicalidade dos amigos. O arranjo de Terra (Caetano Veloso, 1978) exemplifica a habilidade de dar frescor ao que parece girar na rota da previsibilidade. Quando fala das sacadas dos sobrados da velha São Salvador, os sons percussivos do violão de Caetano simulam os tambores dos tempos do imperador, instrumento-símbolo da negritude resistente em priscas eras. Mas, quando segundos depois o cantor lembra na mesma estrofe que "a Bahia tem um jeito", seu violão já é pura manemolência, tirada das cordas. A naturalidade com que Caetano e Gil encadeiam no roteiro obras pautadas pela pluralidade faz com que o público assimile tanto uma música em inglês que cita na letra o então nascente reggae, Nine out of ten (Caetano Veloso, 1972), quanto um rock desossado pela estética acústica do show, Odeio (Caetano Veloso, 2006), dono de melodia que resiste bem ao violão (também o de Gil) que preserva o andamento nervoso desse hit da recente fase Cê da antropofágica discografia de Caetano. Entre lembranças sutis da penetração da música hispânica em terras brasileiras, ecoada em Tonada de luna llena (Simón Diáz) - solo em que Caetano recorre ao seu falsete - e no já mencionado bolero Tres palabras, os dois amigos revivem com doçura Esotérico (Gilberto Gil, 1976), reminiscência de encontro bárbaro. Até a força da canção italiana é lembrada - com Come Prima (Alessandro Taccani, Vincenzo Di Paola e Mario Panzeri, 1957), música cantada tanto por Caetano como Gil - no roteiro do show de turnê de rota planetária que parece extrapolar os limites do planeta Terra quando Gil filosofa sobre a finitude em Não tenho medo da morte (Gilberto Gil, 2008) com voz de tom cavernoso que parece vir de outra dimensão existencial. Mesmo com a rouquidão, a voz de Gil - a propósito - continua plena de sentidos e significados. Seu solo em Drão (Gilberto Gil, 1972) atesta o vigor que desafia seus 73 anos. Senhor da música, Gil faz com que todo mundo embarque mais uma vez no Expresso 2222 (Gilberto Gil, 1972) e se deixe seduzir pela pegada funkeada de Toda menina baiana (Gilberto Gil, 1979). E, por mais que estejam evocando todo o Brasil através do roteiro e que tenham mandado Aquele abraço (Gilberto Gil, 1969) com toda carioquice no segundo bis da apresentação carioca de 18 de outubro de 2015, Caetano Veloso e Gilberto Gil fazem da Bahia o epicentro de Dois amigos, um século de música. "Ê Santo Amaro!", gritou Gil ao pôr Andar com fé (Gilberto Gil, 1982) na roda, samba cantado em uníssono pelo cantores com direito a joviais requebros de Caetano. E é sintomático que tudo acabe (antes do bis) no compasso do ijexá Filhos de Gandhi (Gilberto Gil, 1973). Caetano Veloso e Gilberto Gil rodam o mundo com essa síntese de seus 50 anos de carreira (o que justifica o roteiro centrado em sucessos), mas terminam sempre na Bahia, o quintal-celeiro, ponto de referência do qual partiram há 50 anos em travessia que os tornou universais, como prova este primoroso show que condensa um século de música brasileira no tom fraterno dos dois amigos.
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♪ O título do show Dois amigos, um século de música alude ao fato de Caetano Veloso e Gilberto Gil estarem completando e festejando juntos, neste ano de 2015, cinco décadas de suas respectivas carreiras. Duas carreiras afins, irmãs, que correm paralelas desde que os artistas extrapolaram as fronteiras da Bahia natal e ganharam exposição nacional a partir de 1965 com a gravação e edição de compactos pela gravadora RCA. A soma dos 50 anos de carreira de Caetano com os 50 de Gil daria "um século de música". Mas o título faz mais sentido quando a visão do show - cuja turnê de rota internacional, iniciada em 25 de junho em Amsterdam, chegou à cidade do Rio de Janeiro (RJ) no último fim de semana - mostra que, juntos no palco, a sós com seus respectivos violões e com o justo status de gênios da MPB, Caetano e Gil se irmanam na exposição fraterna de um século de música brasileira. Sim, embora a composição mais antiga do repertório seja o bolero cubano Tres palabras (Osvaldo Farrés), lançado em 1946 e ouvido no show na voz rouca de Gil, os cantores e compositores sintetizam um século de música brasileira nas vozes, nos violões e nas 30 músicas do roteiro. Desde que o samba é oficialmente samba, a partir de novembro de 1916, a música brasileira se expandiu em ramificações que, de uma certa forma, estão representadas no roteiro de Dois amigos, um século de música, show de sucesso massivo que tem lotado grandes casas das cidades por onde tem passado. Situado musicalmente entre Rio e Bahia, evocada já na abertura do show, quando em uníssono Caetano e Gil relembram em Back in Bahia (Gilberto Gil, 1972) o inventário existencial do exílio londrino, feito por Gil na volta ao Brasil, o roteiro abarca diversos afluentes da música brasileira. Se Coração vagabundo (Caetano Veloso, 1967) - que começa a bater com a habitual suavidade na voz de Gil para somente depois ser ouvido com seu compositor - é o eco ainda vívido do poder transformador da Bossa Nova, É luxo só (Ary Barroso e Luiz Peixoto, 1957) representa o requebrado brasileiro de antes da bossa do fundamental João Gilberto. E aí, nesse momento, Gil brilha provisoriamente mais do que Caetano em um "cai para lá, cai para cá" de sua voz e de seu violão que reiteram a espantosa musicalidade do preto que Caetano gostava antes mesmo de ser alguém na música. Antes da bossa de João, houve também o baião de Luiz Gonzaga (1912 - 1989), ídolo dos dois amigos, rei da musical nação nordestina, evocado com reverência na fogueira armada em São João Xangô menino (Caetano Veloso e Gilberto Gil, 1976). Depois da bossa de João, houve a Tropicália, o movimento pop de 1967 orquestrado por Caetano e Gil para derrubar os muros da música brasileira, redefinindo os conceitos de bom e mau gosto. O solo vocal de Caetano em Tropicália (Caetano Veloso, 1967) e o de Gil em Marginália II (Gilberto Gil e Torquato Neto, 1967) saúdam os poetas que desfolharam a bandeira entre pânicos e glórias. Única novidade do repertório, incorporada ao roteiro a partir da estreia do show em palcos brasileiros, As camélias do quilombo do Leblon - samba que se revela mais engenhoso e mais sedutor a cada audição, desfazendo a impressão inicial de ser composição meramente mediana - remete a tempos remotos de lutas pelo fim da escravidão. No fim do samba, quando percute o violão e emula a voz de um preto velho, Gil sintetiza toda a carga ancestral da negritude africana que pauta a música brasileira, sêmem que gerou tanto o samba-reggae - ritmo que sustenta o Olodum, grupo lembrado no show com seu hit Nossa gente (Avisa lá ) (Roque Carvalho, 1992) em número festivo em que os cantores alternam tons e timbres - quanto o rap não evidente no show, mas presente na obra dos dois amigos desde a parceria na composição de Haiti (Caetano Veloso e Gilberto Gil, 1993), ausência sentida do roteiro pautado por sucessos como Sampa (Caetano Veloso, 1978), tema cantado por Caetano e adornado por leves toques de percussão tirados por Gil de seu violão.
A obviedade da inclusão de alguns hits cantados com avidez por um público mais conservador é redimida pela musicalidade dos amigos. O arranjo de Terra (Caetano Veloso, 1978) exemplifica a habilidade de dar frescor ao que parece girar na rota da previsibilidade. Quando fala das sacadas dos sobrados da velha São Salvador, os sons percussivos do violão de Caetano simulam os tambores dos tempos do imperador, instrumento-símbolo da negritude resistente em priscas eras. Mas, quando segundos depois o cantor lembra na mesma estrofe que "a Bahia tem um jeito", seu violão já é pura manemolência, tirada das cordas. A naturalidade com que Caetano e Gil encadeiam no roteiro obras pautadas pela pluralidade faz com que o público assimile tanto uma música em inglês que cita na letra o então nascente reggae, Nine out of ten (Caetano Veloso, 1972), quanto um rock desossado pela estética acústica do show, Odeio (Caetano Veloso, 2006), dono de melodia que resiste bem ao violão (também o de Gil) que preserva o andamento nervoso desse hit da recente fase Cê da antropofágica discografia de Caetano. Entre lembranças sutis da penetração da música hispânica em terras brasileiras, ecoada em Tonada de luna llena (Simón Diáz) - solo em que Caetano recorre ao seu falsete - e no já mencionado bolero Tres palabras, os dois amigos revivem com doçura Esotérico (Gilberto Gil, 1976), reminiscência de encontro bárbaro. Até a força da canção italiana é lembrada - com Come Prima (Alessandro Taccani, Vincenzo Di Paola e Mario Panzeri, 1957), música cantada tanto por Caetano como Gil - no roteiro do show de turnê de rota planetária que parece extrapolar os limites do planeta Terra quando Gil filosofa sobre a finitude em Não tenho medo da morte (Gilberto Gil, 2008) com voz de tom cavernoso que parece vir de outra dimensão existencial. Mesmo com a rouquidão, a voz de Gil - a propósito - continua plena de sentidos e significados. Seu solo em Drão (Gilberto Gil, 1972) atesta o vigor que desafia seus 73 anos. Senhor da música, Gil faz com que todo mundo embarque mais uma vez no Expresso 2222 (Gilberto Gil, 1972) e se deixe seduzir pela pegada funkeada de Toda menina baiana (Gilberto Gil, 1979). E, por mais que estejam evocando todo o Brasil através do roteiro e que tenham mandado Aquele abraço (Gilberto Gil, 1969) com toda carioquice no segundo bis da apresentação carioca de 18 de outubro de 2015, Caetano Veloso e Gilberto Gil fazem da Bahia o epicentro de Dois amigos, um século de música. "Ê Santo Amaro!", gritou Gil ao pôr Andar com fé (Gilberto Gil, 1982) na roda, samba cantado em uníssono pelo cantores com direito a joviais requebros de Caetano. E é sintomático que tudo acabe (antes do bis) no compasso do ijexá Filhos de Gandhi (Gilberto Gil, 1973). Caetano Veloso e Gilberto Gil rodam o mundo com essa síntese de seus 50 anos de carreira (o que justifica o roteiro centrado em sucessos), mas terminam sempre na Bahia, o quintal-celeiro, ponto de referência do qual partiram há 50 anos em travessia que os tornou universais, como prova este primoroso show que condensa um século de música brasileira no tom fraterno dos dois amigos.
É muita historia pra duas pessoas, é um orgulho muito grande pra nós brasileiros termos musicos com tanto talento e genialidade
Salve Caetano e Gil! Os mestres reis da nossa MPB!!! Repertório muito bem vindo e bem escolhido!!!
Vi o show em Portugal, aqui em Oeiras. Foi muito bom!
cinco estrelas para um show de sucessos manjados e banquinhos e violões? ninguém tem coragem de falar mal de Gil e de Caetano,
Não concordo com o Luca, porque assisti o show aqui em São Paulo e ele é incrível. Os dois cantando bem, tocando muito bem, entrosados e com um repertório que toda a plateia canta junto. Não fosse o palco gigante do Citibank Hall (e os valores dos ingressos), poderia ser chamado de um show intimista entre os artistas e o público.
No entanto, acho muito interessante o comentário. Tem um Q de verdade aí. Se os dois fizessem um show cantando clássicos da Kelly Key, provavelmente sairiam críticas dizendo que os dois valorizaram o repertório da cantora. Os dois parecem estar em pólos extremos: ou a crítica só fala bem ou tem alguns que enchem a boca para falar mal, mas com fundamento bastante raso.
è um show caça níquel, pra ganhar dinheiro, e muito dinheiro. Juntam os dois grandes nomes cantando músicas conhecidas do grandes público ou grande parte delas e faz o show. Resultado: Conta bancária abastecida!
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