Título: A mulher do fim do mundo
Artista: Elza Soares (em foto de Rodrigo Goffredo)
Local: Teatro Oi Casa Grande (Rio de Janeiro, RJ)
Data: 1º de dezembro de 2015
Cotação: * * * * *
♪ A imponente cenografia idealizada para o show A mulher do fim do mundo, de Elza Soares, é bem explícita ao entronizar a cantora carioca no alto do palco. O cenário expõe a supremacia da rainha da bossa negra na cena que a alinha com músicos que dão o tom da cena contemporânea da cidade de São Paulo (SP) como o guitarrista Kiko Dinucci e o violonista Rodrigo Campos. O canto resistente de Elza paira mesmo acima de tudo e todos no show mais impactante deste ano de 2015. Aos 85 anos, a valente artista saiu da zona de conforto ao dar voz rouca a um repertório inteiramente inédito - composto para ela por compositores paulistanos como Douglas Germano, Romulo Fróes e Clima, além dos já mencionados Kiko Dinucci e Rodrigo Campos - em álbum, A mulher do fim do mundo, que já chegou ao mercado fonográfico em outubro como clássico instantâneo da discografia brasileira. Pois o melhor disco de 2015 resultou no melhor show de 2015 - ambos orquestrados sob a batuta do produtor e diretor Guilherme Kastrup, que também acumula a função de baterista da big-band que incorpora eventualmente quarteto de cordas (arranjado pelo baixista Marcelo Cabral) e naipe de metais soprados pelo Bixiga 70. Do alto, com porte de rainha, Elza Soares comanda a cena. Ela é o centro da cena e, como tal, está posicionada no palco. Quando solta a voz, parece expelir pela garganta toda a forte carga de ancestralidade que eletriza o Brasil mulato. Quando Elza abre o show cantando a capella Coração do mar (José Miguel Wisnik sobre poema de Oswald de Andrade, 2015), é como se o navio negreiro, guerreiro, humano, aportasse no palco para sinalizar que a chapa está quente. Elza Soares canta o fim do mundo no disco - patrocinado pelo projeto Natura Musical - e no show que corre o Brasil na mesma vibe do álbum. E é deste canto guerreiro que a cantora irradia luz negra que ilumina um samba feito em esquema noise, torto, distorcido pelas guitarras do rock. Mas, na essência, samba de pele preta, curtida pela lágrima que brota pelos pés cansados da guerra cotidiana. Samba que harmoniza cordas sobre batuque, como na música-título Mulher do fim do mundo (Romulo Fróes e Alice Coutinho, 2015). Ali, em cena, Elza pisa firme sobre chão que parece se abrir debaixo dos seus pés - e a abertura é tanto musical (pela estrutura harmônica dos arranjos) quanto social. O canal (Rodrigo Campos, 2015) e Luz vermelha (Kiko Dinucci e Clima, 2015) são músicas que caminham juntas no roteiro do show por esse chão sem chão. Só que Elza está acima de tudo, dura na queda, com moral para elevar o preço de A carne (Seu Jorge, Marcelo Yuka e Ulisses Cappelletti, 1998) - a música do grupo Farofa carioca que tomou para si ao gravá-la em disco também relevante, Do cóccix até o pescoço (Maianga Discos, 2002) - ao bradar indignada contra o recente assassinato de cinco jovens negros cariocas por PMs da partida cidade do Rio de Janeiro que pariu a negra Elza no já longínquo ano de 1930. A guitarra tinhosa de Dinucci parece chorar sobre os mortos cobrados pela cantora em cena. Mas Elza lava a carne que ainda tem no osso - para citar verso de Dança (Cacá Machado e Romulo Fróes, 2015) - e caminha para frente com a urgência urbana que pauta Firmeza?! (Rodrigo Campos, 2015), o diálogo apressado travado com Rodrigo Campos no mesmo tom do disco. Sim, Elza reproduz no palco a contundência do disco. Encara a violência doméstica contra a mulher no samba Maria da Vila Matilde (Douglas Germano, 2015) e faz a leoa virar loba no cio que se abre para o macho no samba Pra fuder (Kiko Dinucci, 2015), um dos números turbinados com o naipe de metais orquestrados pelo grupo Bixiga 70. A performática entrada em cena de Rubi - cantor goiano criado no Distrito Federal - valoriza Benedita (Celso Sim, Pepê Mata Machado, Joana Barossi e Fernanda Diamant, 2015), perfil do transexual que comanda a zona do crack. Com movimentos sombrios e um canto cheio de energia, Rubi faz Benedita soar ainda mais desnorteante do que no disco. Após encarnar Benedita, Rubi permanece em cena para ser acalentado por Elza no tom maternal de Malandro (Jorge Aragão e Jotabê, 1976), samba que Elza lançou há quase 40 anos e que se afina com o repertório fora-da-lei criado para o disco A mulher do fim do mundo. E o mundo parece mesmo ter chegado ao fim quando Elza cria um canto grave, gutural, quase fantasmagórico, para dar voz à concretista Solto (Marcelo Cabral e Clima, 2015). Na sequência, os músicos se deslocam de seus postos e encaram Elza de frente, como espectros de um mundo já decomposto. É o fim inebriante de um show em que a vida adquire caráter transcendental quando Elza arremata o roteiro, a capella, com Comigo (Romulo Fróes e Alberto Tassinari, 2015), se conectando à mãe em outro mundo, outra dimensão espiritual. Mas negra Elza é dura na queda (tanto que disfarça bem o fato de ler algumas letras e textos ditos em cena). O bis é a superação na cadência bonita do samba Volta por cima (Paulo Vanzolini,1962). E o fecho é com Pressentimento (Elton Medeiros e Hermínio Bello de Carvalho, 1968). É quando o samba deixa de ficar torto e soa (en)quadrado. Pressentimento é o sopro da esperança que não morre. Facho de luz entre a treva que Elza Soares canta e encara com valentia em show perfeito.
17 comentários:
♪ A imponente cenografia idealizada para o show A mulher do fim do mundo, de Elza Soares, é bem explícita ao entronizar a cantora carioca no alto do palco. O cenário expõe a supremacia da rainha da bossa negra na cena que a alinha com músicos que dão o tom da cena contemporânea da cidade de São Paulo (SP) como o guitarrista Kiko Dinucci e o violonista Rodrigo Campos. O canto resistente de Elza paira mesmo acima de tudo e todos no show mais impactante deste ano de 2015. Aos 85 anos, a valente artista saiu da zona de conforto ao dar voz rouca a um repertório inteiramente inédito - composto para ela por compositores paulistanos como Douglas Germano, Romulo Fróes e Clima, além dos já mencionados Kiko Dinucci e Rodrigo Campos - em álbum, A mulher do fim do mundo, que já chegou ao mercado fonográfico em outubro como clássico instantâneo da discografia brasileira. Pois o melhor disco de 2015 resultou no melhor show de 2015 - ambos orquestrados sob a batuta do produtor e diretor Guilherme Kastrup, que também acumula a função de baterista da big-band que incorpora eventualmente quarteto de cordas (arranjado pelo baixista Marcelo Cabral) e naipe de metais soprados pelo Bixiga 70. Do alto, com porte de rainha, Elza Soares comanda a cena. Ela é o centro da cena e, como tal, está posicionada no palco. Quando solta a voz, parece expelir pela garganta toda a forte carga de ancestralidade que eletriza o Brasil mulato. Quando Elza abre o show cantando a capella Coração do mar (José Miguel Wisnik sobre poema de Oswald de Andrade, 2015), é como se o navio negreiro, guerreiro, humano, aportasse no palco para sinalizar que a chapa está quente. Elza Soares canta o fim do mundo no disco - patrocinado pelo projeto Natura Musical - e no show que corre o Brasil na mesma vibe do álbum. E é deste canto guerreiro que a cantora irradia luz negra que ilumina um samba feito em esquema noise, torto, distorcido pelas guitarras do rock. Mas, na essência, samba de pele preta, curtida pela lágrima que brota pelos pés cansados da guerra cotidiana. Samba que harmoniza cordas sobre batuque, como na música-título Mulher do fim do mundo (Romulo Fróes e Alice Coutinho, 2015). Ali, em cena, Elza pisa firme sobre chão que parece se abrir debaixo dos seus pés - e a abertura é tanto musical (pela estrutura harmônica dos arranjos) quanto social. O canal (Rodrigo Campos, 2015) e Luz vermelha (Romulo Fróes e Clima, 2015) são músicas que caminham juntas no roteiro do show por esse chão sem chão.
Só que Elza está acima de tudo, dura na queda, com moral para elevar o preço de A carne (Seu Jorge, Marcelo Yuka e Ulisses Cappelletti, 1998) - a música do grupo Farofa carioca que tomou para si ao gravá-la em disco também relevante, Do cóccix até o pescoço (Maianga Discos, 2012) - ao bradar indignada contra o recente assassinato de cinco jovens negros cariocas por PMs da partida cidade do Rio de Janeiro que pariu a negra Elza no já longínquo ano de 1930. A guitarra tinhosa de Dinucci parece chorar sobre os mortos cobrados pela cantora em cena. Mas Elza lava a carne que ainda tem no osso - para citar verso de Dança (Cacá Machado e Romulo Fróes, 2015) - e caminha para frente com a urgência urbana que pauta Firmeza?! (Rodrigo Campos, 2015), o diálogo apressado travado com Rodrigo Campos no mesmo tom do disco. Sim, Elza reproduz no palco a contundência do disco. Encara a violência doméstica contra a mulher no samba Maria da Vila Matilde (Douglas Germano, 2015) e faz a leoa virar loba no cio que se abre para o macho no samba Pra fuder (Kiko Dinucci, 2015), um dos números turbinados com o naipe de metais orquestrados pelo grupo Bixiga 70. A performática entrada em cena de Rubi - cantor goiano criado no Distrito Federal - valoriza Benedita (Celso Sim, Pepê Mata Machado, Joana Barossi e Fernanda Diamant, 2015), perfil do transexual que comanda a zona do crack. Com movimentos sombrios e um canto cheio de energia, Rubi faz Benedita soar ainda mais desnorteante do que no disco. Após encarnar Benedita, Rubi permanece em cena para ser acalentado por Elza no tom maternal de Malandro (Jorge Aragão e Jotabê, 1976), samba que Elza lançou há quase 40 anos e que se afina com o repertório fora-da-lei criado para o disco A mulher do fim do mundo. E o mundo parece mesmo ter chegado ao fim quando Elza cria um canto grave, gutural, quase fantasmagórico, para dar voz à concretista Solto (Marcelo Cabral e Clima, 2015). Na sequência, os músicos se deslocam de seus postos e encaram Elza de frente, como espectros de um mundo já decomposto. É o fim inebriante de um show em que a vida adquire caráter transcendental quando Elza arremata o roteiro, a capella, com Comigo (Romulo Fróes e Alberto Tassinari, 2015), se conectando à mãe em outro mundo, outra dimensão espiritual. Mas negra Elza é dura na queda (tanto que disfarça bem o fato de ler algumas letras e textos ditos em cena). O bis é a superação na cadência bonita do samba Volta por cima (Paulo Vanzolini, 1962). E o fecho feliz é com Pressentimento (Elton Medeiros e Hermínio Bello de Carvalho, 1968). É quando o samba deixa de ficar torto e é enquadrado na forma cotidiana. Pressentimento é o sopro da esperança que não morre. Facho de luz entre as trevas que Elza Soares canta e encara com valentia em show perfeito.
Mauro do cóccix é de 2002
Elza fechando o show com Pressentimento (lindo samba!) é uma sacada incrível para esse show tb incrível! O cd é totalmente indispensável! Não me canso de ouvir! Tomara lancem dvd do show tb. Adoro Elza,com sua voz de trompete.
Grato, Italo, pelo toque do já corrigido erro de digitação na data do álbum 'Do cóccix até o pescoço'. Grato também a Romulo Fróes, por ter me avisado, em caráter privado, que 'Luz vermelha' é de Kiko Dinucci com Clima, não de Romulo com Clima. Abs, obrigado, MauroF
Luis Claudio, quando soube qual era o repertório do show, não entendi 'Pressentimento' estar no roteiro. Mas ontem tudo fez sentido. É um facho de luz e esperança nestes tempos de trevas. Abs, MauroF
Doido pra assistir ao show!!
Já garanti ingresso para janeiro/2016!!
Que bom que o melhor disco do ano parece ter gerado, também,o melhor show!
Deusa! Preciso ver esse show!
Melhores disco e show do ano!
Impactante. Instigante. Apos ver o show fica no ar a pergunta- e agora, como faço para juntar os pedaços? Me senti em uma sessao SM, foi tanta dor e ao mesmo tempo tanto prazer que me sinto anestesiado. Sinto uma vontade de me reinventar sair da minha zona de conforto e me jogar na vida. Ao ver e ouvir esta jovem senhora tive a certeza de que foi o melhor mestrado que pude fazer. E tanta força que nem parece um mortal em cena. E como se alguma Deus se materializa-se no palco e mostrasse ao mundo para onde vamos caminhar se nao tomarmos as redeas de nossa vida.
Eu assisti aqui no Teatro da Moóca em SP ....foi fantástico ...o som, o volume da voz de Elza, o equalização dos instrumentos hora pesados, hora mais como trilha sonora, mas sempre deixando a voz se sobressair ...o show nos leva a uma viagem de pensamentos e reflexôes somados ao fato de estarmos assistindo a uma mulher tão guerreira como uma personagem de um filme épico. Como se fosse uma cena de Blade Runner, ou Mad Max na cúpula do trovão ...uma Comandante no caus do fim do mundo guiando os ultimos sobreviventes da música ...foi emocionante.
Esse show é uma das coisas mais brutais que já vi/encarei. Foram raras as vezes em que um artista foi capaz de acrescentar tanto de si a canções que são, por si só, já tão fortes e corajosas. Todo brasileiro deveria assistir a esse espetáculo!
O disco é desconcertante vc fica num ecstasy sem fim muitooooo boom o show deve estar imperdível mesmo só pela resenha vc se imagina assistindo numa sala de espetáculos.
Mais uma vez você foi preciso na brilhante crítica:UM SHOW PERFEITO... e complemento: absolutamente singular, como a singularíssima artista fabulELZA que o conduz, com mestria e como se fora, no alto do impactante pedestal, a própria Mãe África ou a
nanã buruku, matriarca africana e suma-sacerdotisa, ou seja, a DIVINELZA.
Confesso que fiquei tão eletrizado com o que vi, que perdi o rumo de casa, ao sair do grandioso e já antológico espetáculo. Aos 85 anos ela prova, mais uma vez, que é a mais ousada, moderna, antenada, corajosa, engajada, atemporal, enfim, a mais artística/provocativa/inquieta das nossas cantoras. Não por acaso a BBC de Londres elegeu-a CANTORA DO MILÊNIO.Antes deste desconcertante e acertadíssimo show -sim, disparado, o melhor do ano- somente um havia provocado em mim, maravilhosos estranhamentos e perplexidades exultantes: "DE NORMAL BASTAM OS OUTROS", com a vibrante e talentosíssima MARIA ALCINA, personalíssima , transgressora e carnavalizante, enfim, excepcionALCINA. Foram os melhores shows que vi em 2015, quiçá, na última década.
A ins(piração) para o nome do show da maravilhELZA, parece surgida aqui:
Metade pássaro
A mulher do fim do mundo
Dá de comer às roseiras,
Dá de beber às estátuas,
Dá de sonhar aos poetas.
A mulher do fim do mundo
Chama a luz com assobio,
Faz a virgem virar pedra,
Cura a tempestade,
Desvia o curso dos sonhos,
Escreve cartas aos rios,
Me puxa do sono eterno
Para os seus braços que cantam
.De O visionário (1941)
Murilo Mendes
Elza é fodástica! Ô mulher talentosa! Tomara que tudo isso saia em DVD!
Elza soares e Daniela Mercury Sao as grandes surpresas do ano de 2015..
Adorei O visionário de Murilo Mendes.
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