Título: Antes do mundo acabar
Artista: Zélia Duncan (em foto de Rodrigo Goffredo)
Local: Circo Voador (Rio de Janeiro, RJ)
Data: 20 de março de 2016
Cotação: * * * * *
♪ "O samba é o lugar da alegria", sentenciou Zélia Duncan logo no começo da primeira apresentação carioca do show Antes do mundo acabar, iniciada já aos primeiros minutos deste domingo, 20 de março de 2016. A cantora estava sob a lona do Circo Voador, uma das casas de shows que mais abriga a alegria do público carioca na cidade do Rio de Janeiro (RJ). E o fato é o que samba já em si nobre de Zélia ganhou calor em apresentação contagiante que honrou o repertório do primeiro álbum de sambas da cantora e compositora fluminense, Antes do mundo acabar (Biscoito Fino, 2015), disco irretocável em que Zélia abriu parcerias com sambistas consagrados nas rodas do Rio como Arlindo Cruz e Xande de Pilares Já na abertura da apresentação, Destino tem razão (2015) - um dos três sambas feitos por Zélia com Xande, que apareceu de surpresa no bis para o apoteótico fecho coletivo com Samba de arerê (Xande de Pilares, Arlindo Cruz e Mauro Júnior, 1999), número que reuniu a anfitriã e todos os convidados da estreia carioca do show - sinalizou que a noite seria festiva, mágica, e transcorreria em alto astral. O público cantou sambas como Eu mudei (Bia Paes Leme e Zélia Duncan, 2015) juntamente com Zélia, como se estivesse numa roda. Eu mudei, a propósito, é a prova de que a cantora conseguiu emular as melhores tradições do samba carioca na produção autoral do disco produzido por Bia Paes Leme com arranjos do violonista Marco Pereira. Segura nessa roda, pela presença de músicos tarimbados como os percussionistas Pretinho da Serrinha e Thiago da Serrinha, Zélia cantou todos os 14 sambas da edição física em CD de Antes do mundo acabar, recebeu parceiros do repertório para duetos - Ana Costa, Pedro Luís e Zeca Baleiro foram os convidados - e reviveu sambas que já havia gravado na discografia iniciada em 1990. Reentraram na roda de Zélia pérolas como Na hora da sede (Luiz Américo e Braguinha, 1974), samba gravado pela cantora com o tempero do Trio Mocotó no álbum Sortimento (Universal Music, 2001), porém mais associado à voz ancestral da cantora fluminense Clementina de Jesus (1901 - 1987), elo do Brasil com a matriz africana. Outro achado foi Nega manhosa (Herivelto Martins, 1957), samba lançado na voz imponente do cantor gaúcho Nelson Gonçalves (1919 - 1998) e revivido por Zélia no álbum, Eu me transformo em outras (Duncan Discos, 2004), que a pôs na linha de frente da música brasileira. Nesse bloco inicial, o show Antes do mundo acabar foi pautado pela extroversão de sambas como Por que você não me convida agora? (Riachão, 2013), incursão da cantora na roda baiana. Expansiva, visivelmente encorajada pela imediata adesão calorosa do público, Zélia Duncan cantou e sambou como se estivesse no fundo de frondoso quintal, saboreando frutos colhidos para o disco, como a primeira parceria com o bamba Arlindo Cruz, Dormiu, mas acordou (2005), samba de refrão forte que descende da linhagem da turma pagodeira revelada na década de 1980 nas rodas armadas na quadra do bloco Cacique de Ramos. Contudo, o show extrapolou fronteiras, rodas e panelas, transitando por outras rotas. Precedido pela récita dos versos escritos por Tom Zé para a letra de O riso e a faca (Tom Zé, 1970), Tô - joia composta pelo tropicalista baiano com o carioca Elton Medeiros - ficou entre o samba e o choro, muito pelo toque virtuoso do bandolim de Pedro Franco. Houve também espaço para a delicadeza poética de Alameda de sonho (Ana Costa e Zélia Duncan, 2015) e para o groove funkeado de Cabelo duro (2004), samba do vanguardista paulistano Itamar Assumpção (1949 - 2003), lembrado também com outro samba de 2004, Leonor, cantado em espirituoso dueto com Ana Costa, que entrara em cena no número anterior para cantar um samba do disco, Pra quem sabe amar (2015), parceria de Zélia com a própria Ana. A participação vivaz de Ana Costa esteve em sintonia com o espírito festivo da apresentação. Primeiro convidado a pisar no palco do Circo Voador, Zeca Baleiro entrou sorrateiro, sem ser anunciado, no meio de Antes do mundo acabar (2015), o samba que compôs com Zélia e que deu título ao álbum de 2015 e ao show deste ano de 2016. Cheio de dengo e ginga, Baleiro também enveredou com Zélia pelas quebradas de Disritmia (Martinho da Vila, 1974). Em lugar e noite de alegria, a anfitriã deu a voz grave - sempre afinada, no tom certo - a Quisera eu (2005), o surpreendente samba gerado a partir da primeira e única parceria da artista com Lulu Santos, um dos maiores artesãos do pop nacional. Samba inédito na voz de Zélia, Pela internet (1996) ganhou força e expôs o caráter visionário do compositor Gilberto Gil ao fazer samba que apontou há 20 anos os caminhos que seguiriam seguidos pelo universo pop e pela indústria da música. Feito por Zélia com banda que incluía o violão sete cordas de Domingos Teixeira e o violão de Webster Santos, o show evidenciou também as vozes eficazes de Thiaguinho da Serrinha - responsável por cantar em No meu país (2015) a parte que coube no disco a Xande de Pilares, parceiro de Zélia neste samba que soa como a trilha sonora ideal para o atual momento político do Brasil - e de Pretinho da Serrinha, ouvido em Por água abaixo (2015), samba feito para Zélia por Pretinho com Fred Camachgo e Leandro Fab. Parceria de Zélia com Pedro Luís, convidado do samba, Um final (2015) põe na roda a melancolia afetiva que também brota nos fundos dos quintais. Melancolia que pauta a obra majestosa de Ivone Lara, lembrada com um de seus mais belos sambas, Em cada canto, uma esperança (Ivone Lara e Délcio Carvalho, 1978). Em tom mais interiorizado, mas ainda assim mais expansivo do que a gravação do disco, Vida da minha vida (Moacyr Luz e Sereno, 2010) se insinua como anticlímax que não se concretiza diante do coro do público e da animação que levanta Estação derradeira (Chico Buarque, 1987), outro samba inédito na voz de Zélia. Em noites de fogueiras desvairadas e cidadãos inteiramente loucos, com carradas de razão, ouvir o samba e a batucada da banda de Zélia Duncan em lugar de alegria - como o Circo Voador - aquece a alma e pede passagem para a nobreza dos bambas de cidade em que cada ribanceira pode ser uma nação.
9 comentários:
♪ "O samba é o lugar da alegria", sentenciou Zélia Duncan logo no começo da primeira apresentação carioca do show Antes do mundo acabar, iniciada já aos primeiros minutos deste domingo, 20 de março de 2016. A cantora estava sob a lona do Circo Voador, uma das casas de shows que mais abriga a alegria do público carioca na cidade do Rio de Janeiro (RJ). E o fato é o que samba já em si nobre de Zélia ganhou calor em apresentação contagiante que honrou o repertório do primeiro álbum de sambas da cantora e compositora fluminense, Antes do mundo acabar (Biscoito Fino, 2015), disco irretocável em que Zélia abriu parcerias com sambistas consagrados nas rodas do Rio como Arlindo Cruz e Xande de Pilares Já na abertura da apresentação, Destino tem razão (2015) - um dos três sambas feitos por Zélia com Xande, que apareceu de surpresa no bis para o apoteótico fecho coletivo com Samba de arerê (Xande de Pilares, Arlindo Cruz e Mauro Júnior, 1999), número que reuniu a anfitriã e todos os convidados da estreia carioca do show - sinalizou que a noite seria festiva, mágica, e transcorreria em alto astral. O público cantou sambas como Eu mudei (Bia Paes Leme e Zélia Duncan, 2015) juntamente com Zélia, como se estivesse numa roda. Eu mudei, a propósito, é a prova de que a cantora conseguiu emular as melhores tradições do samba carioca na produção autoral do disco produzido por Bia Paes Leme com arranjos do violonista Marco Pereira. Segura nessa roda, pela presença de músicos tarimbados como os percussionistas Pretinho da Serrinha e Thiago da Serrinha, Zélia cantou 13 dos 14 sambas da edição física em CD de Antes do mundo acabar, recebeu parceiros do repertório para duetos - Ana Costa, Pedro Luís e Zeca Baleiro foram os convidados - e reviveu sambas que já havia gravado na discografia iniciada em 1990. Reentraram na roda de Zélia pérolas como Na hora da sede (Luiz Américo e Braguinha, 1974), samba gravado pela cantora com o tempero do Trio Mocotó no álbum Sortimento (Universal Music, 2001), porém mais associado à voz ancestral da cantora fluminense Clementina de Jesus (1901 - 1987), elo do Brasil com a matriz africana. Outro achado foi Nega manhosa (Herivelto Martins, 1957), samba lançado na voz imponente do cantor gaúcho Nelson Gonçalves (1919 - 1998) e revivido por Zélia no álbum, Eu me transformo em outras (Duncan Discos, 2004), que a pôs na linha de frente da música brasileira. Nesse bloco inicial, o show Antes do mundo acabar foi pautado pela extroversão de sambas como Por que você não me convida agora? (Riachão, 2013), incursão da cantora na roda baiana. Expansiva, visivelmente encorajada pela imediata adesão calorosa do público, Zélia Duncan cantou e sambou como se estivesse no fundo de frondoso quintal, saboreando frutos colhidos para o disco, como a primeira parceria com o bamba Arlindo Cruz, Dormiu, mas acordou (2005), samba de refrão forte que descende da linhagem da turma pagodeira revelada na década de 1980 nas rodas armadas na quadra do bloco Cacique de Ramos. Contudo, o show extrapolou fronteiras, rodas e panelas, transitando por outras rotas.
Precedido pela récita dos versos escritos por Tom Zé para a letra de O riso e a faca (Tom Zé, 1970), Tô - joia composta pelo tropicalista baiano com o carioca Elton Medeiros - ficou entre o samba e o choro, muito pelo toque virtuoso do bandolim de Pedro Franco. Houve também espaço para a delicadeza poética de Alameda de sonho (Ana Costa e Zélia Duncan, 2015) e para o groove funkeado de Cabelo duro (2004), samba do vanguardista paulistano Itamar Assumpção (1949 - 2003), lembrado também com outro samba de 2004, Leonor, cantado em espirituoso dueto com Ana Costa, que entrara em cena no número anterior para cantar mais um samba de 2004, Benditas, parceria de Zélia com Mart'nália. A participação vivaz de Ana Costa esteve em sintonia com o espírito festivo da apresentação. Primeiro convidado a pisar no palco do Circo Voador, Zeca Baleiro entrou sorrateiro, sem ser anunciado, no meio de Antes do mundo acabar (2015), o samba que compôs com Zélia e que deu título ao álbum de 2015 e ao show deste ano de 2016. Cheio de dengo e ginga, Baleiro também enveredou com Zélia pelas quebradas de Disritmia (Martinho da Vila, 1974). Em lugar e noite de alegria, a anfitriã deu a voz grave - sempre afinada, no tom certo - a Quisera eu (2005), o surpreendente samba gerado a partir da primeira e única parceria da artista com Lulu Santos, um dos maiores artesãos do pop nacional. Samba inédito na voz de Zélia, Pela internet (1996) ganhou força e expôs o caráter visionário do compositor Gilberto Gil ao fazer samba que apontou há 20 anos os caminhos que seguiriam seguidos pelo universo pop e pela indústria da música. Feito por Zélia com banda que incluía o violão sete cordas de Domingos Teixeira e o violão de Webster Santos, o show evidenciou também as vozes eficazes de Thiaguinho da Serrinha - responsável por cantar em No meu país (2015) a parte que coube no disco a Xande de Pilares, parceiro de Zélia neste samba que soa como a trilha sonora ideal para o atual momento político do Brasil - e de Pretinho da Serrinha, ouvido em Por água abaixo (2015), samba feito para Zélia por Pretinho com Fred Camachgo e Leandro Fab. Parceria de Zélia com Pedro Luís, convidado do samba, Um final (2015) põe na roda a melancolia afetiva que também brota nos fundos dos quintais. Melancolia que pauta a obra majestosa de Ivone Lara, lembrada com um de seus mais belos sambas, Em cada canto, uma esperança (Ivone Lara e Délcio Carvalho, 1978). Em tom mais interiorizado, mas ainda assim mais expansivo do que a gravação do disco, Vida da minha vida (Moacyr Luz e Sereno, 2010) se insinua como anticlímax que não se concretiza diante do coro do público e da animação que levanta Estação derradeira (Chico Buarque, 1987), outro samba inédito na voz de Zélia. Em noites de fogueiras desvairadas e cidadãos inteiramente loucos, com carradas de razão, ouvir o samba e a batucada da banda de Zélia Duncan em lugar de alegria - como o Circo Voador - aquece a alma e pede passagem para a nobreza dos bambas de cidade em que cada ribanceira pode ser uma nação.
Extasiado com a resenha e cheio de vontade de que esse show chegue aqui pelo Nordeste.
Foi maravilhoso...
Que enorme prazer!
Bela critica! E achei muito bom colocar quase o disco inteiro no setlist, ultimamente não tenho visto esse peito por parte dos artistas. E esse cenário? Está lindo demais. Será que ela vai levá-lo pra todas as cidades!? Espero que sim!
Essa moça há tempos save das coisas boas e simples. Viver.
Gosto do disco, mas não morri de amores, não (o importante é não deixar morrer, né). O cenário tá lindo (Zélia tem caprichado lindamente no palco nesses últimos shows)!! Acredito que ao vivo o disco tenha ganhado o calor que não encontrei no disco. Torcendo pra ver logo.
"Pela internet" me lembra uma fala ótima do Caetano, numa entrevista de uns três anos atrás, em que a Folha tentava forjar briga dos dois, pois tinham pontos de vista diferentes sobre o creative commons. "Gil defende e fez até uma música sobre, mas ele não sabe muito bem como funciona, nem o e-mail ele usa direito. Ele gosta mais é da ideia." Grito de rir quando lembro disso, haha! <3
Zélia já em incursionando na roda do samba baiano, a exemplo da gravação de "Ralador" (Roque Ferreira e Paulo Cesar Pinheiro), num dueto com Simone, em Amigo é casa (2008).
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