Mauro Ferreira no G1

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domingo, 3 de abril de 2016

Canto preciso de Cida é sol do sentido que faz tudo vibrar no show Soledade

Resenha de show
Título: Soledade
Artista: Cida Moreira (em foto de Mauro Ferreira)
Local: Teatro do Sesc Santana (São Paulo, SP)
Data: 2 de abril de 2016
Cotação: * * * * *

Cida Moreira é dama dos palcos. É no calor da cena que tudo vibra na voz e na alma desta intérprete que sempre transitou no limiar entre a música e o teatro. Um dos grandes discos do ano passado, Soledade (Joia Moderna, 2015) tem fortalecido o pulso político no show que estreou em 30 de outubro de 2015 na mesma cidade de São Paulo (SP) para onde retornou neste primeiro fim de semana de abril de 2016 em duas apresentações no teatro do Sesc Santana. Nem todos os músicos do disco - como o acordeonista Mestrinho - estão na banda que acompanha Cida em cena, sob a direção musical do violonista Omar Campos. Mas tudo ganha mais sentido no palco iluminado pelo diretor Humberto Vieira, pelas projeções - que destacam a exibição do desconcertante clipe de O pulso (Arnaldo Antunes, Marcelo Fromer e Tony Bellotto, 1989) enquanto Cida reanima esta música do repertório do grupo paulistano Titãs - e, sobretudo, pelo canto da intérprete. Tal como o homônimo disco que o inspirou, o show Soledade fala do Brasil sem amarras estéticas. A voz de Cida ecoa tanto a tristeza dos jecas que habitam os interiores do Brasil rural - que pulsa na modinha ancestral do modernista Mário de Andrade (1893 - 1945), Viola quebrada (1928), e no tema popular Moreninha (domínio público) - quanto as ironias de quem levantou a voz contra a opressão em solo urbano para se livrar das trevas de uma ditadura, destruída com o ácido corrosivo que pauta o rock A última voz do Brasil (Tico Terpins, Zé Rodrix, Armando Ferrante Jr. e Próspero Albanese, 1985), joia do repertório do grupo Joelho de Porco reverberada por Cida em tons operísticos, apoteóticos. Na apresentação de 2 de abril de 2016, o pulso político de Soledade também foi tomado pela participação do convidado Thiago Pethit, cantor paulistano que vem fazendo conexões com Cida e que teve a balada Forasteiro (Thiago Pethit e Hélio Flanders, 2010) incluída no disco. Pethit estava ali sobretudo para destilar a melancolia de Forasteiro, número feito com Cida ao piano, mas foi carnavalizando a opressão - ao dividir com a anfitriã a interpretação da desbocada marcha Beija-me, amor (Arnaldo Baptista e Élcio Decário, 1972), lançada por Rita Lee em álbum solo que, a rigor, foi um disco d'Os Mutantes não creditado oficialmente ao grupo - que Pethit mais contribuiu para a cena de Cida, dando ao show caráter subversivo, marcando posição política e tomando partido das liberdades democráticas. A sós com o piano e/ou com a banda que incluía músicos como o baixista Izaías Amorim e o pianista Yuri Salvanini, Cida deu mais brilho no show a músicas que, no disco, pareceram mais pálidas, sobretudo Oitava cor (Luis Filipe Gama e Tiago Torres da Silva, 2015) e o Poema da Rosa (Jards Macalé e Augusto Boal, 1969, a partir de poema de Bertolt Brecht), que floresceu em todos os sentidos na apresentação de 2 de abril. Cantora de múltiplos tons, Cida sabe tanto soar solar e expansiva - como em Bom dia (Nana Caymmi e Gilberto Gil, 1967), número em que o palco se ilumina de forma real e metafórica - quanto soturna, como em Construção (Chico Buarque, 1971), reerguida em clima de tango em arranjo criado por Arthur de Faria. Ou ainda árida, como em Outra cena (Taiguara, 1976). A voz vai do grave aos agudos experimentados no tom operístico que banha A terceira margem do rio (Milton Nascimento e Caetano Veloso, 1990), momento em que a intérprete extrapola o repertório do disco Soledade, rebobinado em cena em ordem similar a do álbum. Afinal, Cida Moreira é a mais digna voz  e dama dos cabarés nativos, qualidade que lhe permite arriscar abordagem histriônica - livre para alterar tons e divisões - de Cajuína (Caetano Veloso, 1979), outra música ausente do disco. Nesses momentos, o piano é o que basta a esta saloon singer brasileira. Com canção de Fátima Guedes, Minha Nossa Senhora (1995), inserida de bônus no bis em feitio de oração,  o show Soledade atinge o ápice da cena com O pulso. Mas o número que poderia ser o fim excepcional do show acaba sendo o contraponto para o anticlímax esboçado com o arremate feito com a marcha carnavalesca As pastorinhas (Noel Rosa e João de Barro, 1934). Já é na coxia que Cida termina de cantar os versos cheios de esperança. Se o pulso ainda pulsa, fraquejado pelas contradições do Brasil que desconhece o Brasil, o coração não se cansa de amar um país que parece se encontrar em estado terminal, mas que sobrevive reanimado no canto politizado e poético da dama dos palcos. Como diz com emoção através dos versos de Preciso cantar (Arthur Nogueira e Dand M, 2013), bela canção de Arthur Nogueira interpretada na íntegra no show (como deveria ter sido cantada no disco...),  Cida Moreira se fere ao cantar. Mas ela precisa cantar. E o canto é preciso, é o sol do sentido que faz tudo vibrar no show Soledade, inclusive o pulso que ainda pulsa.

5 comentários:

Mauro Ferreira disse...

♪ Cida Moreira é dama dos palcos. É no calor da cena que tudo vibra na voz e na alma desta intérprete que sempre transitou no limiar entre a música e o teatro. Um dos grandes discos do ano passado, Soledade (Joia Moderna, 2015) tem fortalecido o pulso político no show que estreou em 30 de outubro de 2015 na mesma cidade de São Paulo (SP) para onde retornou neste primeiro fim de semana de abril de 2016 em duas apresentações no teatro do Sesc Santana. Nem todos os músicos do disco - como o acordeonista Mestrinho - estão na banda que acompanha Cida em cena, sob a direção musical do violonista Omar Campos. Mas tudo ganha mais sentido no palco iluminado pelo diretor Humberto Vieira, pelas projeções - que destacam a exibição do desconcertante clipe de O pulso (Arnaldo Antunes, Marcelo Fromer e Tony Bellotto, 1989) enquanto Cida reanima esta música do repertório do grupo paulistano Titãs - e, sobretudo, pelo canto da intérprete. Tal como o homônimo disco que o inspirou, o show Soledade fala do Brasil sem amarras estéticas. A voz de Cida ecoa tanto a tristeza dos jecas que habitam os interiores do Brasil rural - que pulsa na modinha ancestral do modernista Mário de Andrade (1893 - 1945), Viola quebrada (1928), e no tema popular Moreninha (domínio público) - quanto as ironias de quem levantou a voz contra a opressão em solo urbano para se livrar das trevas de uma ditadura, destruída com o ácido corrosivo que pauta o rock A última voz do Brasil (Tico Terpins, Zé Rodrix, Armando Ferrante Jr. e Próspero Albanese, 1985), joia do repertório do grupo Joelho de Porco reverberada por Cida em tons operísticos, apoteóticos. Na apresentação de 2 de abril de 2016, o pulso político de Soledade também foi tomado pela participação do convidado Thiago Pethit, cantor paulistano que vem fazendo conexões com Cida e que teve a balada Forasteiro (Thiago Pethit e Hélio Flanders, 2010) incluída no disco. Pethit estava ali sobretudo para destilar a melancolia de Forasteiro, número feito com Cida ao piano, mas foi carnavalizando a opressão - ao dividir com a anfitriã a interpretação da desbocada marcha Beija-me, amor (Arnaldo Baptista e Élcio Decário, 1972), lançada por Rita Lee em álbum solo que, a rigor, foi um disco d'Os Mutantes não creditado oficialmente ao grupo - que Pethit mais contribuiu para a cena de Cida, dando ao show caráter subversivo, marcando posição política e tomando partido das liberdades democráticas. A sós com o piano e/ou com a banda que incluía músicos como o baixista Izaías Amorim e o pianista Yuri Salvanini, Cida deu mais brilho no show a músicas que, no disco, pareceram mais pálidas, sobretudo Oitava cor (Luis Filipe Gama e Tiago Torres da Silva, 2015) e o Poema da Rosa (Jards Macalé e Augusto Boal, 1969, a partir de poema de Bertolt Brecht), que floresceu em todos os sentidos na apresentação de 2 de abril.

Mauro Ferreira disse...

Cantora de múltiplos tons, Cida sabe tanto soar solar e expansiva - como em Bom dia (Nana Caymmi e Gilberto Gil, 1967), número em que o palco se ilumina de forma real e metafórica - quanto soturna, como em Construção (Chico Buarque, 1971), reerguida em clima de tango em arranjo criado por Arthur de Faria. Ou ainda árida, como em Outra cena (Taiguara, 1976). A voz vai do grave aos agudos experimentados no tom operístico que banha A terceira margem do rio (Milton Nascimento e Caetano Veloso, 1990), momento em que a intérprete extrapola o repertório do disco Soledade, rebobinado em cena em ordem similar a do álbum. Afinal, Cida Moreira é a mais digna voz e dama dos cabarés nativos, qualidade que lhe permite arriscar abordagem histriônica - livre para alterar tons e divisões - de Cajuína (Caetano Veloso, 1979), outra música ausente do disco. Nesses momentos, o piano é o que basta a esta saloon singer brasileira. Com canção de Fátima Guedes, Minha Nossa Senhora (1995), inserida de bônus no bis em feitio de oração, o show Soledade atinge o ápice da cena com O pulso. Mas o número que poderia ser o fim excepcional do show acaba sendo o contraponto para o anticlímax esboçado com o arremate feito com a marcha carnavalesca As pastorinhas (Noel Rosa e João de Barro, 1934). Já é na coxia que Cida termina de cantar os versos cheios de esperança. Se o pulso ainda pulsa, fraquejado pelas contradições do Brasil que desconhece o Brasil, o coração não se cansa de amar um país que parece se encontrar em estado terminal, mas que sobrevive reanimado no canto politizado e poético da dama dos palcos. Como diz com emoção através dos versos de Preciso cantar (Arthur Nogueira e Dand M, 2013), bela canção de Arthur Nogueira interpretada na íntegra no show (como deveria ter sido cantada no disco...), Cida Moreira se fere ao cantar. Mas ela precisa cantar. E o canto é preciso, é o sol do sentido que faz tudo vibrar no show Soledade, inclusive o pulso que ainda pulsa.

Pedro Progresso disse...

assisti o show "Soledade" mês passado e fiquei caído pela presença de Cida. quanto ao show, é um repertório tão pessoal que é uma coisa de autoria mesmo. lindo! no show q eu assisti ainda faltava um pouco de ensaio pra ser perfeito, mas valeu muito a pena.

BIGODE disse...

O show de sabádo foi muito bom, lindo....mas o de domingo foi excelente, sublime....a participação do Hélio foi destruidora, que show!!!

clovisgau disse...

Discordo de que o País esteja em estado terminal..está "pulsando" mais que nunca..As manifestações do dia 31 atestam isso.Será que vc não está ouvindo muito "lobão"?