Mauro Ferreira no G1

Aviso aos navegantes: desde 6 de julho de 2016, o jornalista Mauro Ferreira atualiza diariamente uma coluna sobre o mercado fonográfico brasileiro no portal G1. Clique aqui para acessar a coluna. O endereço é http://g1.globo.com/musica/blog/mauro-ferreira/


segunda-feira, 11 de abril de 2016

Filme equilibra (bem) Cacaso na corda bamba entre poesia e letra de música

Resenha de documentário
Título: Cacaso na corda bamba
Direção: José Joaquim Salles 
Codireção: PH Souza
Trilha sonora original: Francis Hime
Cotação: * * * *
Filme em exibição na 21ª edição do É tudo verdade - Festival internacional de documentários
Sessões às 13h de 12 de abril de 2016 (Espaço Itaú 6, RJ), às 21h de 14 de abril (Cinearte, SP) e às 13h de 15 de abril (Cinearte, SP) 


"Quando o mar
Quando o mar tem mais segredo
Não é quando ele se agita
Nem é quando é tempestade 
Nem é quando é ventania 
Quando o mar tem mais segredo 
É quando é calmaria" 
(Amor, amor, Sueli Costa e Cacaso, 1975)


Antonio Carlos de Brito (Uberaba - MG, 13 de março de 1944 / Rio de Janeiro - RJ, 27 de dezembro de 1987) - o poeta, compositor e professor conhecido nos meios literário e musical pelo apelido de Cacaso - pedia para não ser incomodado se, da janela do apartamento em que morava na cidade do Rio de Janeiro, estivesse mirando silenciosamente o mar de Copacabana. Naqueles momentos, Cacaso estava em processo de criação. Da contemplação do mar, poderiam surgir versos que se tornariam poesia ou letra de música se ganhassem posteriormente melodia de Sueli Costa, Djavan, Edu Lobo ou Francis Hime - para citar quatro dos mais importantes parceiros de Cacaso na construção de obra musical iniciada em 1965 com a gravação da música Carro de boi (Cacaso e Maurício Tapajós) pelo grupo Os Cariocas. Dada por um dos entrevistados pelo cineasta José Joaquim Salles para o documentário Cacaso na corda bamba, essa informação da relação privada do matuto mineiro com o mar é uma das chaves que o filme dá para abrir o coração do poeta. E por isso faz todo o sentido quando o sensível documentário sobre o artista reproduz - na voz da parceira Sueli Costa - a estrofe inicial de um grande sucesso de Cacaso como compositor, Amor, amor, canção propagada na voz de Maria Bethânia em gravação feita para o álbum Pássaro proibido (Philips, 1976). Quando era calmaria, Cacaso tinha mais segredo e criava mais. Contudo, o filme - exibido em primeira mão na 21ª edição do festival de documentários É tudo verdade - mostra que Cacaso também se agitou com a ventania provocada pela cena literária carioca dos anos 1970 que gerou a criação de movimento de poesia marginal, produzida e comercializada às margens do mercado controlado pelo governo ditatorial da época. Ainda que estruturado de forma convencional, com azeitado mix de (muitos) depoimentos e (algumas) imagens de arquivo, o filme equilibra bem Cacaso na corda bamba entre poesia e letra de música. Embora iniciada casualmente em 1965 com a composição Carro de boi, a incursão poética de Cacaso pelo universo da música popular foi feita para valer a partir da segunda metade da década de 1970 com a intenção de tirar o artista da vida acadêmica e, pela música, lhe garantir o sustento que até então vinha das aulas ministradas na PUC, um reduto universitário dos poetas marginais. Tal intenção é confirmada pelo próprio Cacaso em uma das imagens de arquivo. Embora perfile o artista a partir dos depoimentos de familiares, compositores, poetas e críticos literários (apresentados em edição ágil que impede a monotonia), Cacaso na corda bamba é entrecortado por trechos do depoimento autobiográfico feito pelo artista em talk-show realizado para o Projeto Brahma Extra - O som do meio dia em 1987. Cedidas por Nei Murce, as imagens do depoimento musicado (por parceiros como Claudio Nucci e Sueli Costa) são extremamente valiosas para que o espectador conheça Cacaso por ele mesmo. Já a obra musical é avalizada em depoimentos de parceiros como Djavan, Edu Lobo e Joyce Moreno. Djavan canta a capella a nordestina Lambada de serpente (1979) e ressalta a habilidade de Cacaso para entrar no universo musical do parceiro. Edu Lobo - visto também em trecho do clipe vintage de Lero-lero (1978), uma das parcerias que fez com Cacaso - reforça o coro dos que tecem loas à poesia musical do mineiro. Parceira de Cacaso na apaixonada canção Beira rio (1981), Joyce - a propósito - reitera a musicalidade que já estava entranhada nos versos de Cacaso antes mesmo de ele se tornar letrista. Descendente de família mineira do campo, Cacaso quebrou a tradição rural do clã ao ingressar na vida artística - com apoio da mãe e reprovação do pai - mas parece nunca ter derrubado totalmente as cercas da fazenda familiar. A origem rural ecoou em muitas letras de músicas. Filho de Cacaso, visto no filme com o pai em caseiras imagens de VHS feitas em 1987, o jornalista Pedro Landim defende o argumento de que, pelas letras de música escritas por Cacaso, é possível conhecer todas as etapas da vida deste poeta intelectual de visual ripongo, traduzido pelas sandálias expostas no cartaz do filme cuja trilha sonora original - composta por ninguém menos do que Francis Hime - traduz o lirismo coloquial da obra de Cacaso, cujos versos também continham finas ironias e uma ideologia de esquerda, embora não fossem necessariamente engajados, como explica um dos depoentes do filme. Poeta formal até a década de 1960, Cacaso passou a ignorar métricas e paradigmas ao cair na marginalidade poética da década de 1970. Contudo, a obra que construiu desde então nunca foi cigana nuvem passageira. Está aí, resistente ao tempo, como documenta o filme Cacaso na corda bamba. O mar do mineiro tinha momentos de agitação e até tempestade, mas, nas profundezas, era calmaria. Talvez por isso, Cacaso ainda emerja - quase 30 anos após a morte precoce que parou o coração do poeta no sopro de uma ventania... - como um dos letristas mais importantes e perenes da música brasileira.

7 comentários:

Mauro Ferreira disse...

♪ Antonio Carlos de Brito (Uberaba - MG, 13 de março de 1944 / Rio de Janeiro - RJ, 27 de dezembro de 1987) - o poeta, compositor e professor conhecido nos meios literário e musical pelo apelido de Cacaso - pedia para não ser incomodado se, da janela do apartamento em que morava na cidade do Rio de Janeiro, estivesse mirando silenciosamente o mar de Copacabana. Naqueles momentos, Cacaso estava em processo de criação. Da contemplação do mar, poderiam surgir versos que se tornariam poesia ou letra de música se ganhassem posteriormente melodia de Sueli Costa, Djavan, Edu Lobo ou Francis Hime - para citar quatro dos mais importantes parceiros de Cacaso na construção de obra musical iniciada em 1965 com a gravação da música Carro de boi (Cacaso e Maurício Tapajós) pelo grupo Os Cariocas. Dada por um dos entrevistados pelo cineasta José Joaquim Salles para o documentário Cacaso na corda bamba, essa informação da relação privada do matuto mineiro com o mar é uma das chaves que o filme dá para abrir o coração do poeta. E por isso faz todo o sentido quando o sensível documentário sobre o artista reproduz - na voz da parceira Sueli Costa - a estrofe inicial de um grande sucesso de Cacaso como compositor, Amor, amor, canção lançada na voz de Maria Bethânia em gravação feita para o álbum Pássaro proibido (Philips, 1976). Quando era calmaria, Cacaso tinha mais segredo e criava mais. Contudo, o filme - exibido em primeira mão na 21ª edição do festival de documentários É tudo verdade - mostra que Cacaso também se agitou com a ventania provocada pela cena literária carioca dos anos 1970 que gerou a criação de movimento de poesia marginal, produzida e comercializada às margens do mercado controlado pelo governo ditatorial da época. Ainda que estruturado de forma convencional, com azeitado mix de (muitos) depoimentos e (algumas) imagens de arquivo, o filme equilibra bem Cacaso na corda bamba entre poesia e letra de música. Embora iniciada casualmente em 1965 com a composição Carro de boi, a incursão poética de Cacaso pelo universo da música popular foi feita para valer a partir da segunda metade da década de 1970 com a intenção de tirar o artista da vida acadêmica e, pela música, lhe garantir o sustento que até então vinha das aulas ministradas na PUC, um reduto universitário dos poetas marginais. Tal intenção é confirmada pelo próprio Cacaso em uma das imagens de arquivo. Embora perfile o artista a partir dos depoimentos de familiares, compositores, poetas e críticos literários (apresentados em edição ágil que impede a monotonia), Cacaso na corda bamba é entrecortado por trechos do depoimento autobiográfico feito pelo artista em talk-show realizado para o Projeto Brahma Extra - O som do meio dia em 1987. Cedidas por Nei Murce, as imagens do depoimento musicado (por parceiros como Claudio Nucci e Sueli Costa) são extremamente valiosas para que o espectador conheça Cacaso por ele mesmo.

Mauro Ferreira disse...

Já a obra musical é avalizada em depoimentos de parceiros como Djavan, Edu Lobo e Joyce Moreno. Djavan canta a capella a nordestina Lambada de serpente (1979) e ressalta a habilidade de Cacaso para entrar no universo musical do parceiro. Edu Lobo - visto também em trecho do clipe vintage de Lero-lero (1978), uma das parcerias que fez com Cacaso - reforça o coro dos que tecem loas à poesia musical do mineiro. Parceira de Cacaso na apaixonada canção Beira rio (1981), Joyce - a propósito - reitera a musicalidade que já estava entranhada nos versos de Cacaso antes mesmo de ele se tornar letrista. Descendente de família mineira do campo, Cacaso quebrou a tradição rural do clã ao ingressar na vida artística - com apoio da mãe e reprovação do pai - mas parece nunca ter derrubado totalmente as cercas da fazenda familiar. A origem rural ecoou em muitas letras de músicas. Filho de Cacaso, visto no filme com o pai em caseiras imagens de VHS feitas em 1987, o jornalista Pedro Landim defende o argumento de que, pelas letras de música escritas por Cacaso, é possível conhecer todas as etapas da vida deste poeta intelectual de visual ripongo, traduzido pelas sandálias expostas no cartaz do filme cuja trilha sonora original - composta por ninguém menos do que Francis Hime - traduz o lirismo coloquial da obra de Cacaso, cujos versos também continham finas ironias e uma ideologia de esquerda, embora não fossem necessariamente engajados, como explica um dos depoentes do filme. Poeta formal até a década de 1960, Cacaso passou a ignorar métricas e paradigmas ao cair na marginalidade poética da década de 1970. Contudo, a obra que construiu desde então nunca foi cigana nuvem passageira. Está aí, resistente ao tempo, como documenta o filme Cacaso na corda bamba. O mar do mineiro tinha momentos de agitação e até tempestade, mas, nas profundezas, era calmaria. Talvez por isso, Cacaso ainda emerja - quase 30 anos após a morte precoce que parou o coração do poeta no sopro de uma ventania... - como um dos letristas mais importantes e perenes da música brasileira.

Unknown disse...

O Cacaso tem uma obra ímpar, de estilo muito próprio. Foi, sem dúvida, um dos grandes poetas brasileiros. O documentário vem em hora muito apropriada.

Anos atrás falou-se num disco inédito com músicas com letras de sua autoria, mas parece que o projeto não foi adiante. Poderiam aproveitar o lançamento do filme e repensar o lançamento do referido CD.

Leandro Soares disse...

Que texto poético! Parabéns, Mauro!

Luca disse...

tenho que dar o braço a torcer, nesse texto o Mauro tava inspirado

Roberto de Brito disse...

A parceria de Cacaso e Sueli Costa rendeu tantas pérolas, que fica difícil enumerá-las!
So como registro, a maravilhosa "Amor, amor" também foi gravada por Marília Barbosa para a trilha sonora da novela " O Grito".

Daniela Aragão disse...

Excelente texto Mauro, assim como seu blog inteiramente dedicadoa a reflexão sobrea a canção. Estava sabendo da realização deste filme por meio do Claudio Nucci, um amigo muito querido. Gravei em 2005 um cd em versão independente inteiramente dedicado à parceria Sueli Costa e Cacaso, lá consta minha gravação da desafiadora e belíssima "Amor Amor", acompanhada do pianista e arranjador Márcio Hallack. Algumas faixas estão disponibilizadas na internet. Defendi também a primeira dissertação de mestrado sobfre Cacaso na Puc Rio, ela que deu o link para o disco. Há tempos ando nesta travessia similar a sua de pesquisar os meandros ricos e inquietantes de nossa música popular brasileira por meio de crônicas e entrevistas. Se pudermos abrir contato será uma satisfação. Parabéns! abraços Daniela Aragão