Mauro Ferreira no G1

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sexta-feira, 27 de maio de 2016

'Açoite' levanta a voz de Juliana Amaral em um desalentado tempo de guerra

Resenha de álbum
Título: Açoite
Artista: Juliana Amaral
Gravadora: Circus
Cotação: * * * *

Quarto álbum de Juliana Amaral, Açoite é um disco longo. As 13 músicas do disco - lançado neste mês de maio de 2016 em edição da Circus - totalizam 68 minutos. Percorrer a trilha incisiva seguida pela cantora e compositora paulistana no sucessor de SM, XLS (Circus, 2012) exige atenção para reparar nas flores e espinhos que compõem denso repertório que transita contundente entre os territórios urbano e rural, revitalizando Matita Perê (Antonio Carlos Jobim e Paulo César Pinheiro, 1973) em regravação que dá novo sentido aos versos do poeta. Como sugere outra regravação, a de Carta (Tom Zé, 1978), Açoite manda notícias do mundo doído e sofrido de cá, de um Brasil em decomposição de valores morais e éticos. Através de repertório que desnuda a face rude de um país povoado por gente que espera nas filas dos pontos de ônibus procurando aonde ir, como Juliana alerta ao pegar Um trem para as estrelas (Gilberto Gil e Cazuza, 1987) como Cristo deste Brasil sem luz, Açoite expõe a personalidade forte da intérprete ao mesmo tempo em que expele o pus da sociedade urbana que deixa homens como Cosme - personagem-título do inédito samba do compositor paulistano Douglas Germano - agonizar ao relento na cinza de garoa. Ao cantar a agonia de Cosme, Juliana enxerta fragmento de O cortejo (1922), poema de Mário de Andrade (1893 - 1945) na gravação para realçar o desvario da Pauliceia e da Brasileia. Em sintonia com o sombrio painel montado por Açoite, Desvão (Juliana Amaral e Humberto Pio) reitera o desencanto do canto de Juliana Amaral, cantora de repertório mais incomum do que a voz eficaz, afinada e atenta ao significado de cada verso. O bloco da artista vai para rua sabendo a quem seguir e açoitar na folia desvairada. "Por trás da máscara é tudo tão igual", sentencia a cantora-colombina na inédita Marcha do homem-bala, tema carnavalesco em que o recorrente compositor Douglas Germano dialoga musical e poeticamente com a Noite dos mascarados (Chico Buarque, 1967). Açoite segue o bloco do desalento. Parceria de Juliana Amaral com Douglas Germano, o samba-canção Pra rua vai direto ao ponto. "Ando mais pra ir / Que pra ver chegar / Mais para ser o grito / Ser a carne viva / Que ser voz altiva / Do que vive morto", contabiliza a intérprete, voz da desesperança. Contudo, como sugere Léo (Milton Nascimento e Chico Buarque de Hollanda, 1978) na gravação que cita Clube da esquina 2 (Milton Nascimento, Lô Borges e Márcio Borges, 1972), Açoite é disco que dá um pulo no mato entre passos firmes na estrada urbana. Dentro da trilha rural, na qual Rio de lágrimas (Tião Carreiro, Piraci e Lourival dos Santos, 1971) corre com fluência, a viola chora em Padecimento (Carreirinho, 1965), moda cantada com sotaque caipira por Juliana em dupla com o irmão João Paulo Amaral, violeiro, violonista e guitarrista da banda do disco, formada por Alberto Luccas (baixo acústico), Gustavo Bugni (teclados) e Rodrigo Digão Braz (bateria). É essa banda que, com os vocalises de Juliana, amplifica Brado aberto (João Paulo Amaral), tema sem letra que alimenta a sensação de que Açoite é disco que peca pelo excesso. Tivesse menos duas ou três músicas, o álbum roçaria a perfeição. Vassalo do samba (Ataulfo Alves, 1966), por exemplo, é boa lembrança que destoa do conceito geral de Açoite e se ajustaria mais ao segundo álbum da cantora, Juliana samba (Lua Music, 2007). Mas, como dito, a trilha é longa e por vezes asfixiante como Gases puros (Lincoln Antonio e Stella do Patrocínio) e como o grito parado no ar ao fim de Léo. Já com 23 anos de carreira e quatro álbuns lançados em discografia iniciada com a edição de Águas Daqui (Lua Music, 2002), Juliana Amaral levanta a voz em Açoite para retratar um tempo de guerra. Por vezes, Açoite soa até como um disco de tempos idos, remetendo às sombras das décadas de 1960 e 1970. Mas o tempo de guerra gira num instante e eis que chega a roda viva da vida, carregando Açoite e a viola para cá - para os sofridos dias de hoje.

2 comentários:

Mauro Ferreira disse...

♪ Quarto álbum de Juliana Amaral, Açoite é um disco longo. As 13 músicas do disco - lançado neste mês de maio de 2016 em edição da Circus - totalizam 68 minutos. Percorrer a trilha incisiva seguida pela cantora e compositora paulistana no sucessor de SM, XLS (Circus, 2012) exige atenção para reparar nas flores e espinhos que compõem denso repertório que transita contundente entre os territórios urbano e rural, revitalizando Matita Perê (Antonio Carlos Jobim e Paulo César Pinheiro, 1973) em regravação que dá novo sentido aos versos do poeta. Como sugere outra regravação, a de Carta (Tom Zé, 1978), Açoite manda notícias do mundo doído e sofrido de cá, de um Brasil em decomposição de valores morais e éticos. Através de repertório que expõe a face rude de país povoado por gente que espera nas filas dos pontos de ônibus procurando aonde ir, como Juliana alerta ao pegar Um trem para as estrelas (Gilberto Gil e Cazuza, 1987) como Cristo deste Brasil sem luz, Açoite expõe a personalidade forte da intérprete ao mesmo tempo em que expele o pus da sociedade urbana que deixa homens como Cosme - personagem-título do inédito samba do compositor paulistano Douglas Germano - agonizar ao relento na cinza de garoa. Ao cantar a agonia de Cosme, Juliana enxerta fragmento de O cortejo (1922), poema de Mário de Andrade (1893 - 1945) na gravação para realçar o desvario da Pauliceia e da Brasileia. Em sintonia com o sombrio painel montado por Açoite, Desvão (Juliana Amaral e Humberto Pio) reitera o desencanto do canto de Juliana Amaral, cantora de repertório mais incomum do que a voz eficaz, afinada e atenta ao significado de cada verso. O bloco da artista vai para rua sabendo a quem seguir e açoitar na folia desvairada. "Por trás da máscara é tudo tão igual", sentencia a cantora-colombina na inédita Marcha do homem-bala, tema carnavalesco em que o recorrente compositor Douglas Germano dialoga musical e poeticamente com a Noite dos mascarados (Chico Buarque, 1967). Açoite segue o bloco do desalento. Parceria de Juliana Amaral com Douglas Germano, o samba-canção Pra rua vai direto ao ponto. "Ando mais pra ir / Que pra ver chegar / Mais para ser o grito / Ser a carne viva / Que ser voz altiva / Do que vive morto", contabiliza a intérprete, voz da desesperança. Contudo, como sugere Léo (Milton Nascimento e Chico Buarque de Hollanda, 1978) na gravação que cita Clube da esquina 2 (Milton Nascimento, Lô Borges e Márcio Borges, 1972), Açoite é disco que dá um pulo no mato entre passos firmes na estrada urbana. Dentro da trilha rural, na qual Rio de lágrimas (Tião Carreiro, Piraci e Lourival dos Santos, 1971) corre com fluência, a viola chora em Padecimento (Carreirinho, 1965), moda cantada com sotaque caipira por Juliana em dupla com o irmão João Paulo Amaral, violeiro, violonista e guitarrista da banda do disco, formada por Alberto Luccas (baixo acústico), Gustavo Bugni (teclados) e Rodrigo Digão Braz (bateria). É essa banda que, com os vocalises de Juliana, amplifica Brado aberto (João Paulo Amaral), tema sem letra que alimenta a sensação de que Açoite é disco que peca pelo excesso. Tivesse menos duas ou três músicas, o álbum roçaria a perfeição. Vassalo do samba (Ataulfo Alves, 1966), por exemplo, é boa lembrança que destoa do conceito geral de Açoite e se ajustaria mais ao segundo álbum da cantora, Juliana samba (Lua Music, 2007). Mas, como dito, a trilha é longa e por vezes asfixiante como Gases puros (Lincoln Antonio e Stella do Patrocínio) e como o grito parado no ar ao fim de Léo. Já com 22 anos de carreira e quatro álbuns lançados em discografia iniciada com a edição de Águas d'áqui (Lua Music, 2002), Juliana Amaral levanta a voz em Açoite para retratar um tempo de guerra. Por vezes, Açoite soa até como um disco de tempos idos, remetendo às sombras das décadas de 1960 e 1970. Mas o tempo de guerra gira num instante e eis que chega a roda viva da vida, carregando Açoite e a viola para cá - para os sofridos dias de hoje.

Rhenan Soares disse...

Tô muito apegado!!! E é doido, porque realmente o disco é muito longo, com faixas longas, enfim. Exige um disponibilidade que não sei dizer se as pessoas estão oferecendo mais, nesses tempos de muito "shuffle" e pouco "repeat".

Mas eu tô. Sem pular um segundo sequer. Maravilhosa!